segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CECÍLIA MEIRELES - É preciso / Imagem


É preciso
Cecília Meireles

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto, o
nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a ideia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.



Imagem
Cecília Meireles

Meu coração tombou na vida
tal qual uma estrela ferida
pela flecha de um caçador.

Meu coração, feito de chama,
em lugar de sangue derrama
um longo rio de esplendor

Os caminhos do mundo, agora,
ficam semeados de aurora.
não sei o que germinarão.

Não sei que dias singulares
cobrirão as terras e os mares,
nascidos do meu coração.

*            *            *

MIGUEL TORGA - Adeus / Súplica

Adeus
Miguel Torga

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...

Agora,
o remédio é partir discretamente,
sem palavras,
sem lágrimas,
sem gestos.

De que servem lamentos e protestos
contra o destino?
Cego assassino
a que nenhum poder
limita a crueldade,
só o pode vencer a humanidade
da nossa lucidez desencantada.

Antes da iniquidade
consumada,
um poema de líquido pudor,
um sorriso de amor,
e mais nada.

**

Súplica
Miguel Torga

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
e que nele posso navegar sem rumo,
não respondas
às urgentes perguntas
que te fiz.

Deixa-me ser feliz
assim,
já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
o nosso amor
durou.

Mas o tempo passou,
há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
matar a sede com água salgada.

*            *            *

domingo, 25 de setembro de 2011

DJAVAN / CACASO - "Lambada de Serpente"

AINDA RESMUNGANDO...

Desabafo
(Recebido por e-mail, sem a autoria)

"Na fila do supermercado o caixa diz a uma senhora idosa que deveria trazer suas próprias sacolas para as compras, uma vez que sacos de plástico não eram amigáveis ao meio ambiente.

A senhora pediu desculpas e disse:
“Não havia essa onda verde no meu tempo.”
O empregado respondeu:
"Esse é exatamente o nosso problema hoje, minha senhora. Sua geração não se preocupou o suficiente com nosso meio ambiente. "

"Você está certo", responde a velha senhora, nossa geração não se preocupou adequadamente com o meio ambiente.
Naquela época, as garrafas de leite, garrafas de refrigerante e cerveja eram devolvidos à loja. A loja mandava de volta para a fábrica, onde eram lavadas e esterilizadas antes de cada reuso, e eles, os fabricantes de bebidas, usavam as garrafas, umas tantas outras vezes.

Realmente não nos preocupamos com o meio ambiente no nosso tempo. Subíamos as escadas, porque não havia escadas rolantes nas lojas e nos escritórios.

Caminhávamos até o comércio, ao invés de usar o nosso carro de 300 cavalos de potência a cada vez que precisávamos ir a dois quarteirões.

Mas você está certo. Nós não nos preocupamos com o meio ambiente.

Até então, as fraldas de bebês eram lavadas, porque não havia fraldas descartáveis.

Roupas secas: a secagem era feita por nós mesmos, não nestas máquinas bamboleantes de 220 volts. A energia solar e eólica é que realmente secavam nossas roupas.

Os meninos pequenos usavam as roupas que tinham sido de seus irmãos mais velhos, e não roupas sempre novas.

Mas é verdade: não havia preocupação com o meio ambiente, naqueles dias. Naquela época tínhamos somente uma TV ou rádio em casa, e não uma TV em cada quarto. E a TV tinha uma tela do tamanho de um lenço, não um telão do tamanho de um estádio; que depois será descartado como?

Na cozinha, tínhamos que bater tudo com as mãos porque não havia máquinas elétricas, que fazem tudo por nós.

Quando embalávamos algo um pouco frágil para o correio, usávamos jornal amassado para protegê-lo, não plástico bolha ou pellets de plástico que duram cinco séculos para começar a degradar.

Naquele tempo não se usava motor a gasolina para cortar a grama, era utilizado um cortador de grama que exigia músculos. O exercício era extraordinário e não se precisava ir a uma academia e usar esteiras que também funcionam a eletricidade.

Mas você tem razão: não havia naquela época preocupação com o meio ambiente.

Bebíamos diretamente da fonte, quando estávamos com sede, em vez de usar copos plásticos e garrafas pet que agora lotam os oceanos.

Canetas: recarregávamos com tinta umas tantas vezes ao invés de comprar uma outra.

Afiávamos as navalhas, ao invés de jogar fora todos os aparelhos 'descartáveis' e poluentes só porque a lâmina ficou sem corte.

Na verdade, tivemos uma onda verde naquela época.

Naqueles dias, as pessoas andavam de bonde ou de ônibus e os meninos iam em suas bicicletas ou a pé para a escola, ao invés de usar a mãe como um serviço de táxi 24 horas.

Tínhamos só uma tomada em cada quarto, e não um quadro de tomadas em cada parede para alimentar uma dúzia de aparelhos.

E nós não precisávamos de um GPS para receber sinais de satélites a milhas de distância no espaço, só para encontrar a pizzaria mais próxima.

Então, não é risível que a atual geração fale tanto em meio ambiente mas não queira abrir mão de nada e não pense em viver um pouco como na minha época?"
* * *



Interessante como a geração de hoje - os maiores poluidores do Planeta - vive repetindo esse discurso de preocupação com o meio ambiente!

Xiiiiiiii!!!!!!!!!!

TEMPOS IDOS...(Resmungo)


"É na escola que a gente aprende
a contar, a criar e a crescer.
É na escola que nasce o desejo
de pensar e de tudo saber.

É na escola que tudo começa,
lá se aprende a viver.
Na escola é que a gente entende
o sentido de Ser.

É na escola que nasce a amizade,
na escola se aprende o valor
de um amigo, de um companheiro,
da paixão, da saudade e do amor.

Vamos à escola!
Toda hora é hora...
Vamos à escola!
Lá se aprende a viver."

Chico Anísio
(Letra da música de abertura do programa humorístico "Escolinha do Professor Raimundo")


(Esse texto foi escrito há dois dias, mas só agora decidi publicar, sei lá por quê)

Já disse a mim mesma - muitas e muitas vezes - que não mais comentaria os absurdos que tenho lido, visto e ouvido na área da Educação. 
Mais uma notícia aterradora sobre a atitude trágica de um aluno, um garotinho de 10 anos de idade... 10 anos! Não gosto de enfatizar essas coisas, mas não tem jeito. Tudo está aí, a toda hora... 
Contive-me por algum tempo pois fiquei travada, abestalhada e todos os "adas" que possam imaginar.
São dias sombrios. O que mais está por vir, Senhor?

Fico então pensando que há tão pouco tempo ainda se acreditava na Educação, ainda existiam programas que satirizavam, com inteligência, alunos, professores, escolas, numa tentativa de chamar a atenção para um problema que começava a se delinear, mas que jamais imaginamos chegar ao ponto em que estamos - o cuidado (ou a falta de) com a educação das crianças.

A situação de violência nas escolas vem se agravando no mundo inteiro e aqui, no Brasil, só neste ano de 2011, podemos listar alguns casos que foram divulgados pela mídia: (e os que não foram?)

. 7 de abril - tiroteio dentro de escola em Realengo-RJ (12 crianças mortas);
. 22 de junho: aluno esfaqueado em escola na Paraíba;
. 26 de agosto: diretora de escola agredida por aluna em Minas Gerais;
. 09 de setembro: aluno armado de revólver em escola de João Pessoa-PB
.22 de setembro: aluno atira em professora e se mata em seguida. São Caetano do Sul-SP

Não se trata mais de fato isolado como querem alguns (esses alguns permitem tudo,  se acham modernos e antenados) - que eu saiba antena é coisa de inseto ou de antigos aparelhos eletrônicos.

A obviedade do discurso de especialistas em Educação também é revoltante. Fala-se muito, analisa-se muito:

"Especialistas ouvidos afirmam: as escolas precisam mudar para tentar evitar novos episódios. Essas mudanças também passam, dizem, pela família e pela formação do professor."
“A escola precisa mudar muito. Precisa evoluir muito em questões pedagógicas, nos métodos de ensino, no próprio relacionamento dos professores com os alunos”, afirma o professor da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) Evandro Camargos Teixeira.
É [preciso] uma política de conscientização de todos os setores”, afirma Teixeira." (Jornal UOL, Educação, 25/9/2011)

O assunto está é servindo de tese de doutorado para muitos desses especialistas, mas a solução, de verdade, não apareceu.

O mundo mudou? Claro. E por isso devemos nos acostumar e aceitar a volta da barbárie. Deve ser a tal involução. 
Pois é, quando fico indignada acabo partindo para o sarcasmo.

Sabe do que mais? Já não pertenço ao meio (educacional), preciso cuidar da minha saúde - mental e física - para, pelo menos, em relação aos meus netos, ter ainda esperança.
Está difícil, está muito difícil acreditar em alguma coisa.

Melhor voltar a falar de poesia...

Sueli
Itatiaia, 23/09/2011
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Ao terminar este post, fui ler as notícias do dia. Não foi uma boa ideia. Mais uma dos especialistas:

SÃO PAULO - O livro didático "Por uma Vida Melhor", transformado em polêmica por admitir como corretos erros da linguagem, não precisará mais ser recolhido pelo Ministério da Educação. O juiz federal Wilson Zauhy Filho, da 13ª Vara Federal Cível de São Paulo, entendeu que o material pode continuar nas mãos de alunos do ensino público porque, segundo ele, não há tempo hábil para uma nova licitação. Assim, os estudantes não teriam outro material para consultar.
"Como não há tempo hábil para uma nova licitação, os alunos não teriam outro livro em sua substituição, sendo irrecuperáveis as perdas de aprendizado", escreveu o juiz na decisão.

O conteúdo do livro, no entanto, não deixa dúvidas sobres erros de concordância, relativizando a necessidade de seguir a norma culta. Num dos trechos, os autores escreveram: "Os livro ilustrado estão emprestado". 
Em seguida, citando a variedade da linguagem popular, eles justificam assim o método utilizado: "Só o fato de haver a palavra os (plural) já indica que se trata de mais de um livro". Em um outro exemplo, mostram que não há problema em falar, por exemplo, "nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe".

Segundo a Justiça Federal, três pessoas entraram com uma ação popular contra União Federal, Ministério da Educação e Global Editora e Distribuidora, pleiteando que fosse declarado nulo o ato administrativo que adotou e distribuiu os livros para estabelecimentos de ensino e que os recolhessem imediatamente. Alegaram que o livro, em vez de ensinar corretamente as regras de linguagem, legitima erros crassos de concordância, bem como não transmite conhecimentos necessários das regras da língua portuguesa.

"Os réus apresentaram pareceres técnicos de especialistas da educação discordando que o livro é inadequado ao ensino de jovens. Para o juiz, isso já demonstra que a discussão é polêmica e que não é possível afirmar de plano que a obra é inservível ao ensino". 
(Jornal O Globo, Educação, 25-9-2011)
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"não é possível afirmar de plano que a obra é inservível"??!!

'Inservível' e 'imexível' !

Então tá então...

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

GEIR CAMPOS - A árvore

A árvore
Geir Campos

Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?

Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?

Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências – que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos –

demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo?
E dize-me: há esperança para o Homem?

*           *            * 

CECÍLIA MEIRELES - Primavera / MIGUEL TORGA - Glória

Primavera
Cecília Meireles


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
*            *            *
Do livro:"Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1"



Glória
Miguel Torga

Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.

* * *

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

ADRIANA CALCANHOTO - Uns Versos

HILDA HILST - A fome do primeiro grito

A fome do primeiro grito
Hilda Hilst

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

*            *            *
In:  "Júbilo, memória, noviciado da paixão". São Paulo: Globo. 2003, P.17 

LYA LUFT - Canção na plenitude

Canção na plenitude
Lya Luft


Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente,
e a pele translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas,
sou uma estrutura
agrandada pelos anos
e o peso dos fardos bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar
é mais que tudo o que perdi:
dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.

Posso dar-te
muito mais do que beleza e juventude agora:
esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor,
com mais paciência
e não menos ardor;
a entender-te se precisas,
a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante
e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

*            *            *

Do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

ADÉLIA PRADO - A serenata


A Serenata
Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

*            *            *

ROSEANA MURRAY - Receita de olhar


Receita de olhar
Roseana Murray

 

Nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol

faça do seu olhar imensa caravela

*            *            *
In: Receitas de Olhar

domingo, 18 de setembro de 2011

ANTONIO GEDEÃO - Aurora boreal


Aurora Boreal
Antonio Gedeão
(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (Lisboa, 24/11/1906 - 19/2/1997)

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambidelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.

Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.

Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fonte sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

*            *            *
In “Teatro do Mundo”, 1958

JOSÉ PAULO PAES - Poética

 
Poética
José Paulo Paes

Não sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas mãos fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão se dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.

*           *            *
In:  "Um por todos"
 

sábado, 17 de setembro de 2011

NANDO REIS e ROBERTA CAMPOS - De Janeiro a Janeiro

ÁLVARO PACHECO - Obstinação


Obstinação
Álvaro Pacheco

Vou em silêncio
plantando minhas sementes
nas pedras rubras da estrada
nos ventos ocres do outono
nos olhos céu da manhã.

Sei que alguém me ouvirá

*           *           *
In:  Balada e Outros Poemas

AFONSO ROMANO DE SANT'ANNA - O duplo


O Duplo
Affonso Romano de Sant'Anna

Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza…

Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
- pensando que sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.

*            *            *

SAPATOS

SABE DE QUEM SÃO ESSES SAPATOS?

Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ADÉLIA PRADO - Corridinho


Corridinho
Adélia Prado

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.


O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

*            *            *
Do livro “Adélia Prado – Poesia reunida”

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

TEXTO INTERESSANTE


Coisa
(Recebi por e-mail, sem a autoria)

A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.

A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".

Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. "E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios......"(Riacho Doce, José Lins do Rego).
Na Paraíba e em Pernambuco, "coisa" também é cigarro de maconha.

Em Olinda, o bloco carnavalesco "Segura a Coisa" tem um baseado como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença canta: "Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego já." E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.

Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica "O Coisa" em 1943. "A Coisa" é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu "A Força das Coisas", e Michel Foucault, "As Palavras e as Coisas".

Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é chamado de "a coisa". A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: "Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa!".

Devido lugar: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (...)". A garota de Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro. "Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca." Coisas de Jobim e de Vinicius, que sabiam das coisas.

Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta "Alguma coisa acontece no meu coração", de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).

Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim!

Coisa de cinema! "A Coisa" virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa "Casseta e Planeta, Urgente!", Marcelo Madureira faz o personagem "Coisinha de Jesus".

Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados,"coisa nenhuma" vira "coisíssima".

Mas a "coisa" tem história na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: "Disparada", de Geraldo Vandré ("Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar"), e "A Banda", de Chico Buarque ("Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor"), que acabou de ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som Livre remasterizou.
Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".

Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o "rei" das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com as coisas.

Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas").
Já para Beth Carvalho, é de carinho e intensidade ("ô coisinha tão bonitinha do pai").
"Todas as Coisas e Eu" é título de CD de Gal.
"Esse papo já tá qualquer coisa...Já qualquer coisa doida dentro mexe." Essa coisa doida é uma citação da música "Qualquer Coisa", de Caetano, que canta também: "Alguma coisa está fora da ordem", "Alguma coisa acontece no meu coração"...

Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.

A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: "Agora a coisa vai." Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!

Coisa à toa. Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema "Eu, Etiqueta", Drummond radicaliza: "Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".

Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e "otras cositas mas".

Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida", cantarola Fagner em "Canteiros", baseado no poema "Marcha", de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa certa e não esqueça o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas as coisas".

Entendeu o espírito da coisa?

*            *            *

FILIPE CATTO - "Saga"

terça-feira, 13 de setembro de 2011

RUBEM BRAGA - O mato


O Mato
Rubem Braga

Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas.
 
Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. 

O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vagalumes nem grilos.  Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma bênção. 

Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. 

Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico.  Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em falar com alguém. Por um instante o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana.

Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. 

Ainda bem que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta.  Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura;  ainda pensava em seus problemas urbanos - mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso coração mineral.

E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso vegetal, um grande sossego, farto de terra e de água;  ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, imóvel, quieto, feliz.
*            *            *

In: 200 crônicas escolhidas. 6 ed. Rio de Janeiro. Record. 1978, p 260-1

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

FERNANDO PESSOA - Poema XXI - Se eu pudesse trincar... (Alberto Caeiro)


XXI
Alberto Caeiro


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
- Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que
[ o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite
[ que fica...
Assim é e assim seja...

*           *            *

MURILO MENDES - Poema dialético


Tela de Enrico Santos

Poema dialético
Murilo Mendes

É necessário conhecer seu próprio abismo
e polir sempre o candelabro que o esclarece

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar;
nossa existência é uma vasta expectação
onde se tocam o princípio e o fim.

A terra terá que ser retalhada entre todos
e restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
a aurora é coletiva.

*        *        *

Murilo Mendes - 1943

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

GUIMARÃES ROSA - Grande Sertão...


(...)" SERTÃO É ISTO: O SENHOR EMPURRA PARA TRÁS, MAS DE REPENTE ELE VOLTA A RODEAR O SENHOR DOS LADOS. SERTÃO É QUANDO MENOS SE ESPERA;" (...)

"O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era: bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão - que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte.  Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe - fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também razoável se caçava.  A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, nunca faltava tempo para à-toa se permanecer.  Dormi sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro d'água.  Às vezes chegavam a nado até em cima duma ilha comprida, onde o capim era lindo verdejo.  O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro."
(...)
"Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo da sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável.  Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava."
*     *     *     *

Grande Sertão: Veredas, Livraria José Olympio Editora, p.218-219 -14ª ed. - 1980

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

PAULINHO MOSKA - A flor e o espinho



A FLOR E O ESPINHO
Composição: NELSON CAVAQUINHO / GUILHERME DE BRITO / ALCIDES CAMINHA

CECÍLIA MEIRELES - Das palavras aéreas

Das Palavras Aéreas
Cecília Meireles

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta;
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois agora?

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

In: "Romanceiro da Inconfidência" - Romance LIII