segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

ÉRICO VERÍSSIMO - trecho de 'O tempo e o vento'

 
Ana Terra (fragmento)
Érico Veríssimo

(...)
D. Henriqueta começou a servir o chimarrão ao marido e aos filhos.  A cuia passou de mão em mão, a bomba andou de boca em boca.  Mas ninguém falava.

Maneco apagou a lamparina, e a luz alaranjada ali dentro da cabana de repente se fez cinzenta e como que mais fria.  As sombras desapareceram do pano onde Ana tinha fito o olhar.  Ela então ficou vendo apenas o que havia nos seus pensamentos.  Seus irmãos tinham levado Pedro para bem longe;  três cavalos e três cavaleiros andando na noite.

Pedro não dizia nada, não fazia nenhum gesto, não procurava fugir, sabia que era seu destino ser morto e enterrado ao pé de uma árvore.

Ana imaginou Horácio e Antônio cavando uma sepultura, e o corpo de Pedro estendido no chão ao pé deles, coberto de sangue e sereno.  Depois os dois vivos atiraram o morto na cova e o cobriram com terra.  Bateram a terra e puseram uma pedra em cima.  E Pedro lá ficou no chão frio, sem mortalha, sem cruz, sem oração, como um cachorro pesteado.

Agora estava tudo perdido. Seus irmãos eram assassinos.  Nunca mais poderia haver paz naquela casa.  Nunca mais eles poderiam olhar direito uns para os outros.  O segredo horroroso havia de roer para sempre a alma daquela gente.  E a lembrança de Pedro ficaria ali no rancho, na estância e nos pensamentos de todos, como uma assombração.

Ana pensou então em matar-se.  Chegou a pegar o punhal que o índio lhe dera, mas compreendeu logo que não teria coragem de meter aquela lâmina no peito e muito menos na barriga, onde estava a criança.
Imaginou a faca trespassando o corpo do filho e teve um estremecimento, levou ambas as mãos espalmadas ao ventre, como para o proteger. 
Sentiu de súbito uma inesperada, esquisita alegria ao pensar que dentro de suas entranhas havia um ser vivo, e que esse ser era seu filho e filho de Pedro, e que esse pequeno ente havia de um dia crescer...

Mas uma nova sensação de desalento gelado a invadiu quando ela imaginou o filho vivendo naquele descampado, ouvindo o vento, tomando chimarrão com os outros num silêncio de pedra, a cara, as mãos, os pés encardidos de terra, a camisa cheirando a sangue de boi (ou sangue de gente?).

O filho ia ser como o avô, como os tios.  E um dia talvez se voltasse também contra ela.  Porque era "filho das macegas", porque não tinha pai.

Tremendo de frio Ana Terra puxou as cobertas até o queixo e fechou os olhos.

*            *            *

OLAVO BILAC - Pássaro cativo

Pássaro Cativo
Olavo Bilac

Armas, num galho de árvore, o alçapão
e, em breve, uma avezinha descuidada,
batendo as asas cai na escravidão.

Dás-lhe então, por esplêndida morada,
gaiola dourada;
dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo.

Por que é que, tendo tudo, há de ficar
o passarinho mudo,
arrepiado e triste sem cantar?

É que, criança, os pássaros não falam.
só gorjeando a sua dor exalam,
sem que os homens os possam entender;

Se os pássaros falassem,
talvez os teus ouvidos escutassem
este cativo pássaro dizer:

"Não quero o teu alpiste!
Gosto mais do alimento que procuro
na mata livre em que voar me viste;
tenho água fresca num recanto escuro
da selva em que nasci;
da mata entre os verdores,
tenho frutos e flores
sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
de haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído
de folhas secas, plácido, escondido.
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a Imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!"

Estas cousas o pássaro diria,
se pudesse falar,
e a tua alma, criança, tremeria,
vendo tanta aflição,
e a tua mão tremendo lhe abriria
a porta da prisão...

*        *        *
In: Antologia poética

MÁRCIA TIBURI - Política da solidão

Casa de Elizabeth Bishop
Ouro preto-MG
Política da solidão 
Marcia Tiburi - Revista 'CULT'

Clinicalização do estar só escamoteia o verdadeiro mal da sociedade atual

Algo vai muito mal com a autocompreensão do ser humano sob a crença de que existe um padrão normal dos afetos que calibraria o todo da experiência emocional humana.

A crença na normalidade confirma apenas que vivemos mergulhados na incomunicabilidade. Os sentimentos humanos são nebulosos e confusos, mas não são expressos senão por meio de atos desesperados que falam por si mesmos.

Se a norma fosse estabelecida pelo que há de mais comum, teríamos de voltar ao paradoxo de Bacamarte: o anormal é normal, o normal é anormal.
(...)

Em pesquisa recentemente divulgada, um médico norte-americano definiu a solidão não apenas como doença, mas como epidemia. Tratou-a como uma tendência contrária à evolução. Definida como um erro da “natureza humana”, a solidão passa a ser vista fora de sua dimensão social e histórica. Como doença, ela seria a causa do sofrimento e não o efeito da perda de sentido da convivência entre as pessoas.
Em última instância, daquilo que seria o significado mais próprio da política como universo da integração entre indivíduos e comunidades.

Em um mundo em que a política foi destruída pelo poder transformado em violência, a solidão é o sintoma do medo do outro que ameaça o indivíduo.

Diz-se indivíduo daquele que não pode ser dividido, que é inteiro. Podemos dizer que a solidão é constitutiva de si no mais simples sentido metafísico.

Mas há a solidão como um fato que diz respeito à vida vivida fora das relações. É essa solidão que deve ser inscrita na filosofia política como afeto político.

Mas não há nada de anormal em um indivíduo viver só. A solidão da qual muitos se queixam hoje como um desprazer pode ser para outros tantos um prazer.

Viver em comunidade não faz sentido para todo mundo e isso não leva necessariamente à conclusão de antissociabilidade da qual o indivíduo seria a vítima ou o culpado.

A solidão nas cidades grandes é muito mais um sinal da precariedade do sentido da comunidade e da convivência, é mais um problema sociocultural do que de escolha individual.


Selva de pedra
Certamente ela reflete a impossibilidade de retornar às florestas, como um dia fez Henry Thoreau. As florestas estão em extinção, assim como, curiosamente, a ideia de humanidade. Resta fugir para a moderna caverna na selva de pedra – sem querer reeditar lugares-comuns – que é a casa de cada um.

A solidão é, assim, a categoria política que expressa a nostalgia de uma vivência de si mesmo. Ela é, por isso, a tentativa de preservar a subjetividade e a intimidade consigo mesmo que não tem lugar no contexto de relações sociais transformadas em mercadorias baratas.

A sociedade da antipolítica precisa tratar a solidão como uma pena e um mal-estar quando não consegue olhar para a miséria da vez: o fetiche da hiperconectividade, que ilude que não somos sozinhos.
*  *  *

domingo, 29 de janeiro de 2012

ASCENSO FERREIRA - Arco-íris

Arco-íris
Ascenso Ferreira
Palmares, 9 de maio de 1895 — Recife, 5 de maio de 1965

-Como é bonito! Como é bonito!
Cheio de cores… cheio de cores…
-Viva o Arco-Íris! – ecoa um grito.
-Oh! Como é belo! Tem sete cores…
-Está bebendo água no riacho!
-Vamos cercá-lo… vamos cercá-lo

-Vamos passar nele por baixo!
-Vamos passá-lo… vamos passá-lo…
-Fugiu do riacho… Subiu o monte…
-Vamos pegá-lo… vamos pegá-lo…
O monte é no alto… Só o horizonte
vazio resta… Onde encontrá-lo?

Fugiu…
A chuva fina tem carícias de morte…
Fugiu…
Para o Sul? Para o Norte?

-Quem sabe?
Desapareceu…
Além…

Vida – Arco-íris também…

*        *        *

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DRUMMOND - A verdade

A Verdade
Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade,
e a sua segunda metade
voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam de verdade...
Arrebentaram a porta.

Derrubaram a porta,
chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
e carecia optar.

Cada um optou conforme
seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.

*        *        *

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

CECÍLIA MEIRELES - Encomenda



Encomenda
Cecília Meireles


Desejo uma fotografia
como esta – o senhor vê? – como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia


*        *        *

In: Antologia Poética - Cecília Meireles

LUIZ DE MIRANDA - Eu te devolvo

Eu te devolvo 
Luiz de Miranda

Eu te devolvo o vento
que aquele dia,
diante do mar,
nos ensinou
as pequenas vagas das marés.


Mas não o livro
onde escreveste em teu coração
os navios perdidos.

*        *        *

LEONARD COHEN - Dance me to the end of love



Diferentes contextos e os passos de dança perfeitamente sincronizados. Adorei!
Além, é claro, da magnífica interpretação de Leonard Cohen. 

Lindo trabalho de vídeo. Parabéns a Crislea pela criação e criatividade.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

JOSE MARTI - La rosa blanca

La Rosa Blanca 
Jose Marti
Havana, 28 de janeiro de 1853 — Dos Ríos, 19 de maio de 1895
político, escritor, jornalista, filósofo e poeta cubano


Cultivo una rosa blanca

en junio como enero

para el amigo sincero

que me da su mano franca.

Y para el cruel que me arranca

el corazón con que vivo,

cardo ni ortiga cultivo;

cultivo la rosa blanca.

*        *        *

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

WISLAWA SZYMBORSKA - Retornos


Retornos
Wislawa Szymborska
Poetisa polonesa, Nobel de Literatura em 1996


Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.

Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe --mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.

Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.

*          *          *

domingo, 22 de janeiro de 2012

DALTON TREVISAN - Bilhete...


Bilhete do escritor, lido na cerimônia de entrega do  Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007

"Só a obra interessa.
O autor não vale o personagem.
O conto é sempre melhor que o contista.
Vampiro sim, de almas.
Espião de corações solitários, escorpião de bote armado.
Eis o contista.
Só invente o vampiro que exista.
Com sorte, você adivinha o que não sabe.
Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta.
Uma história nunca termina. Ela continua depois de você.
Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada.
O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado.
Todas as histórias, a mesma história, uma nova história.
O conto não tem mais fim senão começo.
Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete."

Dalton Trevisan

*            *            *

MOZART - Wladimir Horowitz

sábado, 21 de janeiro de 2012

ELLA FITZGERALD - Dream a Little Dream of Me



A letra da canção é ingênua e pouco significativa, mas a voz e a técnica vocal dessa artista são incríveis... 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

CLARICE LISPECTOR - Água Viva (trechos)


"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada".

*
"A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio".


*
"O que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe. Porque então tenho aos meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade está em alguma parte: mas inútil pensar. Não a descobrirei e no entanto vivo dela".

*
"Criar a si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra viva".


*
"Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos são o limão na ostra? Será que a ostra dorme?".

*     *     *
(Clarice Lispector.In: Água viva. São Paulo: Círculo do livro, 1973).

MARILENA CHAUÍ - fragmento de As metamrfoses


OVÍDIO - As metamorfoses (fragmento)

"Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. 
O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio...O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova.

Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite...

Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida?
Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... a planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor.Tudo floresce. 
O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. 

Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente.

Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem.  

Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos.

Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas.

Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados...todos os seres têm sua origem noutros seres.

Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou de ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. 
Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. 
Ali se acomoda e termina a vida entre os perfumes. 
De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos...

Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste".


*        *        *


(In: Convite à Filosofia - Marilena Chauí. 12 ed. São Paulo: Ática, 2000. p.24-5).

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CESAR CARDOSO - lendo Drummond...

57º Congresso Internacional do Medo
Cesar Cardoso

No princípio é o medo.

Todo boi é da cara preta. Todo bicho é papão. Todo suor é frio. Todo terror, noturno. Há um monstro embaixo de cada cama. Há um monstro embaixo de cada país.

A indústria do medo, as plantações do pavor, o comércio do susto, a genética da fobia, a clonagem do terror.  Este, o sentimento do mundo.

Só existem noites.  O sol fugiu para outra galáxia, em busca de outra humanidade.  Mas as sombras permanecem. E têm medo da própria sombra.

Mas o mal não chega mais.  Fica sempre à espreita, na próxima esquina.   E as esquinas também não chegam.  Estão sempre no próximo passo.  Que ninguém dará.

Alcançamos o reino da liberdade, nenhuma porta mais tem chave.  Pode ser aberta a qualquer hora, por qualquer um.  Não há mais miseráveis nem despossuídos.  Todos têm o que perder.  E não é mais necessário desconfiar de ninguém.  Todos são inimigos.

Preparamos uma canção que enlouquece os homens e acorda as crianças.  Nosso hino, a ser cantado nas igrejas, nas escolas, nos estádios, em todos os lugares de encontro.  Se encontros houvesse.

É obrigatório sonhar.  E os sonhos são de abismos, ondas, nudez na multidão, pernas que não saem do lugar.  E o ar pesado, inquieto, que não se deixa respirar.

Ninguém mais morre de medo.  Não se toca nesse assunto, não se pensa essa palavra.  Ficamos todos vivos, pressentindo a morte, que a terra havia de comer.  Mas já não come.  E vomita sua morte, enjoada de você.

Já não se gritam os gritos, que se enredam, guardados nas gargantas.  Chegou o tempo em que não se diz mais.

Toda mão está suja, toda fotografia dói, toda memória é remorso.  O esquecimento está morto.

Toda canção é do exílio. Todo trabalho é forçado.  E chegou a vez da esperança.  É a única que morre.
Mas não se preocupe.  A importância não tem mais importância.

Os sertões murcharam, os mares se afogaram, os desertos sumiram.  As flores se mataram, os soldados atrofiaram, as mães desertaram, os ditadores choraram, os democratas fugiram.  O que restou? Quem sabe?  Não há ninguém para responder,  Não há ninguém para perguntar.

A partir de hoje, cada um já nasce com seu próprio pânico.  E nas maternidades estão brotando flores amarelas e medrosas.
*            *            *


 Esse texto estava entre coisas guardadas há muito tempo; um pequeno recorte de revista, sem referência da fonte.
Guardado, novamente, aqui.

EDUARDO GALEANO - O mar


Diego não conhecia o mar.
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

*            *            *
Eduardo Hughes Galeano
jornalista e escritor uruguaio (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Lucidez - Lugares comunes - Adolfo Aristarain

A dor da lucidez
Julio Groppa Aquino - Professor na USP, in: Revista "Educação", nº 98
Quem, de frente com as novas gerações, ainda se devota a duvidar das coisas do mundo?


O velho professor de literatura ordena que seus alunos, futuros professores, guardem suas anotações.
Pede então um cigarro e o acende. Senta-se sobre uma das carteiras, quer se fazer ouvir pela última vez.

'Se algum de vocês acredita em verdades reveladas, dogmas religiosos ou em doutrinas políticas, seria indicado dedicar-se a pregar num templo ou numa tribuna. Se, por desgraça, seguirem a profissão, tratem de deixar as superstições no corredor antes de entrar em aula. Não obriguem seus alunos a estudar de memória. Isso não serve. O que se impõe pela força é recusado e em pouco tempo se esquece. Coloquem-se como meta ensiná-los a pensar, que duvidem, que se façam perguntas.'

Assim o protagonista de 'Lugares Comuns", filme argentino-espanhol de 2002, oferta sua derradeira lição. Obrigado a se aposentar, dá uma longa tragada no cigarro e encerra seu percurso profissional com um apelo:

'Há uma missão, ou um mandato, que quero que cumpram. Uma missão que ninguém lhes encomendou, mas que espero que vocês, como professores, se imponham a si próprios. Despertem em seus alunos a dor da lucidez. Sem limites. Sem piedade.'

O ultimato do velho professor é um soco no estômago até dos professores que se creem suando a camisa pela educação brasileira. Quem, em sala de aula, ainda ousa despertar a "dor da lucidez" de pensar? Quem, frente a frente com as novas gerações, ainda se devota a duvidar das coisas do mundo? Raros e - pior ainda - em extinção. Os poucos professores que ainda restam veem-se cada vez mais acuados contra a parede. A parede de concreto do "afeto pedagógico".

Para conservar seus postos de trabalho, têm de sobreviver a um sem número de slogans fraudulentos que grassam no cotidiano escolar. Slogans que pregam como devemos tratar as novas gerações ao pão de ló da proximidade, do carinho, da amizade. Slogans de mau gosto, acéfalos, perniciosos. Contra o cínico "afeto pedagógico", proponho uma antítese cabal: a solidariedade intelectual.

Trata-se da atitude daqueles que não desejam nem fomentam nenhuma admiração pessoal, nenhum compartilhamento de intimidades, nenhuma sedução para agradar a freguesia. Por isso, jamais serão patronos ou patronesses nas formaturas. São rigorosos, às vezes até mal humorados, exatamente porque não negociam com seu posto profissional. Pagam um alto preço por suas escolhas. Apenas alguns alunos, talvez, os compreenderão mais tarde, quando já não estiverem mais por perto.

Com eles aprendemos que só pode haver educação onde houver gerações em confronto. De um lado, o mais velho lutando para impor um olhar voltado ao passado, um olhar vagaroso e atento aos detalhes do mundo. De outro, o mais novo lutando com todas as forças para não deixar macular seu olhar inaugural sobre a vida, um olhar quase sempre plasmado no presente e suas urgências.

Dessa mútua incompreensão nasce lentamente o germe da solidariedade intelectual: uma atitude que em nada se assemelha ao comungar, respeitar ou dialogar, mas antes ao constranger, rivalizar, guerrear - sempre em nome de determinadas idéias que merecem durar no mundo quando dele já tivermos desertado.Uma atitude de interpelação constante, sem limites, sem piedade., A atitude de um professor. E ponto final.
* * *

MACHADO DE ASSIS - Memórias póstumas de Brás Cubas

Tela de Renoir
Virgília...
Machado de Assis in: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois?... A mesma; era justamente a senhora que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações.  Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa.  Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance em que o autor  sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não.  Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.  Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos;  muita preguiça e alguma devoção - devoção, ou talvez medo; creio que medo.

Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida;  era aquilo com dezesseis anos.  Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz - tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi?  Crê que era tão sincero então como agora;  a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
- Mas - dirás tu -, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimí-la, depois de tantos anos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona!  Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos.  Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante.  Não;  é uma errata pensante, isso sim.  Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

*               *               *

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

MARCO POLO GUIMARÃES - Blue

Blue
Marco Polo Guimarães

Com Eric Clapton, um branco,
aprendi um pouco de blue;
o toque mínimo da guitarra,
a busca de perfeição.

Aprendi que música não tem pressa
e o tempo
é uma coisa a ser tecida.

Com Robert Johnson, um preto,
aprendi um pouco de blue;
que música é outra maneira de dizer silêncio.

Aprendi que só valem a pena as palavras
que mudem a cor do dia.

*        *        *

domingo, 15 de janeiro de 2012

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT na voz de ELIS REGINA


Costumo dizer que muita tecnologia me assusta, às vezes. Em outras, agradeço continuar vivendo nesse mundo de mudanças tecnológicas assustadoras. Explico: hoje fiquei sem acesso à internet por muitas horas e me sentindo um pouco entediada por não ter ninguém em casa para conversar. Recebi algumas ligações das filhas, o que muito me agradou. Conversamos, rimos, pusemos a vida em dia.  
Não estava com vontade de ler nem assistir à televisão. O trabalho de casa, todo feito. Mesmo o jardim estava cuidado, considerando esses dias de chuva intermitente que tivemos. 
Enfim, resolvi assistir novamente a uns DVDs que guardo com muito carinho. Escolhi o de Elis Regina - o nº 1 de uma série de 3 - "Batucadas da vida", "Doce de Pimenta" e "Falso brilhante" .
Fico sempre emocionada, encantada mesmo, com a força artística dessa intérprete. As músicas - sempre da melhor qualidade - e a cumplicidade dela e do marido na época, César Camargo Mariano, saltava aos olhos.
Pois bem, lá pelas tantas, antes de cantar "Folhas Secas" - de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito - ela diz um poema de Augusto Frederico Schmidt.
Até aí, tudo bem. Muitos artistas da música entremeiam o show com poesia. Mas não sei se porque hoje me sinto particularmente sensível, ou porque a lembrança de Elis é constante, sei lá, o modo como ela diz o texto, o fato é que fiquei hipnotizada. Eu precisava compartilhar isto.  Vim para o word, apenas para registrar, mas quando finalmente houve disponibilidade da internet, decidi postar o registro do momento porque valeu a pena.
Acredito nesses momentos de enlevo diante da Arte e quis compartilhar.

Ah, talvez uma nota interessante: eu nem me lembrava de que o próximo dia 19 é a data do falecimento de Elis. O filho dela, Marcelo, fala em seu depoimento sobre o último 'café da manhã' e se recorda que era 19 de janeiro. 
Terá sido coincidência hoje ser uma data tão próxima?

Retrato do Desconhecido
Augusto Frederico Schmidt
Rio de Janeiro, 18 de abril de 1906 —  08 de fevereiro de 1965
Modernismo - 2ª geração

Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,
Voz de um homem perdido no mundo,
Voz de quem foi abandonado pelas esperanças,
Voz que não manda nunca,
Voz que não pergunta,
Voz que não chama,
Voz de obediência e de resposta,
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.

Há vozes que aclaram o ser,
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
Vozes de sonho, de maldição e de doçura.
Os ombros eram estreitos,
Ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do
amor inconfundível,

Ombros de quem não sabe caminhar,
Ombros de quem não desdenha nem luta,
Ombros de pobre, de quem se esconde,
Ombros tristes como os cabelos de uma criança morta,
Ombros sem sol, sem força, ombros tímidos,
De quem teme a estrada e o destino
De quem não triunfará na luta inútil do mundo:
Ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão,
Ombros de quem é sempre um Desconhecido,
De quem não tem casa, nem Natal, nem festas;
Ombros de reza de condenado,
E de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas;
Ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas.

Os seus pés e as suas mãos acompanhavam os ombros
num mesmo ritmo.
Mãos sem luz, mãos que levam à boca o alimento
sem substância,
Mãos acostumadas aos trabalhos indolentes,
Mãos sem alegria e sem o martírio do trabalho.
Mãos que nunca afagaram uma criança,
Mãos que nunca semearam,
Mãos que não colheram uma flor.
Os pés, iguais às mãos
— Pés sem energia e sem direção,
Pés de indeciso, pés que procuram as sombras e o esquecimento,
Pés que não brincaram, pés que não correram.

No entanto os olhos eram olhos diferentes.
Não direi, não terei a delicadeza precisa na expressão
para traduzir o seu olhar.
Não saberei dizer da doçura e da infância daqueles olhos,
Em que havia hinos matinais e uma inocência, uma tranqüilidade,
um repouso de mãos maternas.

Não poderei descrever aquele olhar,
Em que a Poesia estava dormindo,
Em que a inocência se confundia com a santidade.
Não poderei dizer a música daquele olhar que me surpreendeu um dia,
Que se abriram diante de mim como um abrigo,
E que me trouxe de repente os dias mortos,
Em que me descobri como outrora,
Livre e limpo, como no princípio do mundo,
Envolvido na suavidade dos primeiros balanços,
Sentindo o perfume e o canto das horas primeiras!
Não direi do seu olhar!

Não direi do seu olhar!
Não direi da sua expressão de repouso!
Ainda não sei se era dele esse olhar,
Ou se nasceu de mim mesmo, num rápido instante de paz
e de libertação!
*            *            *

sábado, 14 de janeiro de 2012

CARTA DE VINÍCIUS PARA CHICO BUARQUE

Detalhe do recorte de jornal, com a carta
Carta de Vinícius de Moraes para Chico Buarque, publicada na coluna Roda Viva de Nelson Motta, no jornal Última Hora.

Finalzinho de 1968. Nelson Motta, 24 anos, assinava coluna diária no Jornal Ultima Hora. Roda viva era o nome, o mesmo da música de Chico Buarque, que tinha a mesma idade de Nelson, compusera no ano anterior. Em dezembro, ele publicou uma carta de Vinicius de Moraes, 55 anos, que fazia shows em Lisboa com Baden Powell e a cantora Márcia, para Chico Buarque. Vinicius, que se diz em lua-de-mel com Cristina Gurjão, sua sexta mulher, se delicia com o “falar” dos lusos, dá conselhos ao futuro papai Chico e conta um papo com Tom Jobim de Las Vegas e fala sobre a curva descendente dos festivais de música no Brasil: “estão se transformando em verdadeiras partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais participarei, pois detesto todo gênero de competição”.

Antes de publicar a carta, Nelson Motta faz uma introdução sobre o sucesso dos "shows recitais" de Vinicius em Lisboa, no Teatro Villaret e na boate Ad Lib e diz que “Vinicius iniciou esse seu show com uma carta a Chico Buarque de Holanda seu amigo de todas as horas”. Logo abaixo vem a carta com data de 13 de dezembro. Atenção na data: é a da decretação do AI-5. A temporada, conta José Castelo na bio O Poeta da Paixão, começou dia 11 e no show do tal dia 13, antes de encerrar com Canto de Ossanha, Vinicius fez um discurso inflamado, e leu seu poema Pátria Minha, o que lhe causou problemas com a ditadura salarazista que reinava no País.

Abaixo, a carta de Vinicius para Chico.

Lisboa, sexta-feira, 13 dezembro

Chico querido:

Pois, pois. Aqui estamos nós, Márcia, Baden e eu, num dos teatros mais prestigiosos de Lisboa, o Villaret, para fazer um showzinho de música e poesia também, como gostamos de apresentar – bem informal, em comunicação bem íntima com as pessoas. As pessoas, pelo que pude notar, são lindas de morrer. Mas não há perigo. Cristina está presente, e nossa lua-de-mel corre mais doce que ovos moles d’Aveiro. Você já provou ovos moles d´Aveiro, Chico? É de comer em prantos. Melhor que isso só mulher, isto é, Cristina. Pena eu estar em dieta de emagrecimento. Mas felizmente não estou em dieta de Cristina.

E você, Chiquinho, como vai essa gravidez? O “miúdo” já está a se revelar um novo Pelé no ventre paterno, aos pontapés, ou tem tendências abstratas, como os poetas novos, aos quais ninguém ouve? Diga a Marietinha que não se preocupe não, porque tudo vai correr muito bem para você. Faça respiração de cachorrinho durante as contrações, como manda o método Lamase, e você não vai sentir dor alguma – ouviu, papai inchado? E por falar nisso, “miúdo” aqui é o equivalente de menino. E trem é comboio. E alô é tá. É engraçado e bonito. E quando uma pessoa é muito bacana, caindo de bossa, diz-se que tem piada, que é giro. Você aqui teria muita piada, seria “girérrimo”.

Ontem, consegui falar com o nosso querido maestro Antônio Carlos Jobim em Las Vegas, onde ele está com o Frank Sinatra, trabalhando num novo disco. Pois imagina que disse só assim à telefonista internacional – “olha aqui, minha filha, eu preciso muito falar com o maestro Tom Jobim nos Estados Unidos, sei que ele está gravando com o Frank Sinatra. Me podia fazer o favor de caçá-lo para mim?” E dez minutos depois ouvi a voz de Tom que me perguntava: “Onde está você?” E eu respondi: “Em Lisboa”. E ele disse: “Que coisa boa!” E eu lhe perguntei: – E eu lhe pergunto: – E você onde está?” E ele retrucou: “Estou em Las Vegas” E eu: “Ai não me pegas”.
E ele falou: “Que estás fazendo?” E eu respondi: “Um show com o Baden e a Marcinha”. E ele, com um profundo suspiro intercontinental: “Ah, que coisinha!” E meu parceiro sabe o que diz!
**
Fiquei contente em saber que você tirou o primeiro lugar no júri popular do IV Festival da Record. Eu acho que os festivais brasileiros estão se transformando em verdadeiras partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais participarei, pois detesto todo gênero de competição. Mas gostei de conhecer o Eusébio, com quem bati um papo ameno, depois do jogo entre o Benfica e o CUF. Você sabe, Chico, que Cristina é torcedora do Flamengo tão violenta que embora nós tivessemos sido convidados para o jogo pelo CUF, em recinto privado, ela teve o topete de agitar uma flâmula do Benfica, que é o correspondente português do Flamengo, e torcer por sua vitória? Eu confesso que tive medo que os dirigentes do CUF nos chutassem para “córner”.

Estou contente porque vamos passar o Natal juntos em Roma e tomar um porre firme e cantar juntos e dar muitos “manguitos” (que é o correspondente de banana) para as estátuas dos imperadores romanos. Foi em Roma que eu conheci você menino, e você, seu safadinho, enquanto eu bebia com seu pai, ficava no alto da escada, no meio da madrugada, só para nos ouvir cantar.
**
Marcinha chegou hoje. Agora nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse Dante Aligheri?

Outro dia minha mulher riu-se muito quando eu lhe disse que o amor cura o câncer. E cura mesmo! E não é outra a razão porque Márcia veio de São Paulo, Baden de Paris e eu do Rio, para esta comunicação linda e indispensável à nossa vida de artistas. E ao levar a vocês nossa poesia e nossas canções, nós o fazemos – insisto mais uma vez em dizê-lo – só por amor. Só amor.


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In: "Coisas  de Ledesma".

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

GILBERTO GIL - A linha e o linho (Gilberto Gil)

DALTON TREVISAN - Apelo

Apelo
Dalton Trevisan

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina.  Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou.  A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada.  Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo.  Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos.  Uma hora da noite eles iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada - meu jeito de querer bem.  Acaso é saudade, Senhora?  Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham.  Não tenho botão na camisa, calço a meia furada.  Que fim levou o sacarrolhas?  Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando.  Venha para casa, Senhora, por favor.
*            *            * 
In: "O conto brasileiro contemporâneo". Org. Alfredo Bosi. S.Paulo. Cultrix. p.190

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

GUIMARÃES ROSA - (trecho)



"Tudo flui e nada permanece"
Heráclito, filósofo grego


O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto; que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.  E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo; ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha, que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei, - "Amanhã eu tiro..." - falei comigo.  Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então sabia: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta.  Deixei, para mais ver.  Estala, espoleta!  Sabe o que foi?  Pois, nessa mesma tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo - por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro.  Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...

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Rosa, João Guimarães, in: "Grande Sertão: Veredas" , 14ª ed. Rio de Janeiro. J.Olympio. 1980. p.20-1

WILLIAM SHAKESPEARE - Monólogo de Hamlet

Monólogo de Hamlet
William Shakespeare, 1564-1616, poeta e dramaturgo inglês

Ser ou não ser, eis a questão.
O que é mais nobre? Sofrer na alma
as flechas da fortuna ultrajante
ou pegar em armas contra um mar de dores
pondo-lhes um fim?

Morrer, dormir, nada mais;
e por via do sono por ponto final
aos males do coração e aos mil acidentes naturais
de que a carne é herdeira, num desenlace
devotadamente desejado.
Morrer! Dormir; dormir,
dormir, sonhar talvez:
mas aqui está o ponto de interrogação;
porque no sono da morte, que sonhos podem assaltar-nos
uma vez fora da confusão da vida?

É isso que nos obriga a refletir: é esse respeito
que nos faz suportar por tanto tempo uma vida de agruras.
Pois quem suportaria as chicotadas e o escárnio do tempo,
as injustiças do opressor, as afrontas dos orgulhosos,
a tortura do amor desprezado, as demoras da lei,
a insolência do oficial e os pontapés
que o paciente mérito recebe do incompetente
quando o próprio poderia gozar da quietude
dada pela ponta de um punhal?

Quem tais fardos suportaria
preferindo gemer e suar sob o peso de uma vida fatigante
a não ser pelo medo de algo depois da morte,
esse país desconhecido de cujos campos
nenhum viajante retornou, e que nos baralha a vontade
e nos faz suportar os males que temos
em vez de voar para o que não conhecemos?

Assim a consciência nos faz a todos covardes
e assim as cores nascentes da resolução
empalidecem perante o frouxo clarão do pensamento
e os planos de grande alcance e atualidade
por via desta perspectiva mudam de sentido
e saem do reino da ação.

*            *            *

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

MÁRIO QUINTANA - Emergência

Emergência
Mário Quintana


Quem faz um poema abre uma janela.

Respira, tu que estás numa cela abafada,

esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo

- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.

*            *            *

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ANTONIO GEDEÃO - Viagem

VIAGEM
Antonio Gedeão

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...

(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

*            *            *

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

MANUEL BANDEIRA - Consoada

Consoada
Manuel Bandeira

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

*            *            *

sábado, 7 de janeiro de 2012

ÉRICO VERÍSSIMO - Solo de clarineta


Érico Lopes Veríssimo (Cruz Alta - RS, 17 de dezembro de 1905 — Porto Alegre - RS, 28 de novembro de 1975)


"Carrego sempre comigo uma boa provisão do sal da malícia e da dúvida para temperar muitas das coisas que digo, escrevo, penso ou faço."
(Solo de Clarineta)

**

"O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica e displicente em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, em uma linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes – alheias ou nossas, antigas ou recentes –, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado — e às vezes, inexplicavelmente, do futuro —; enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite anterior, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas… uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito.
 
Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem", murmuro-lhe às vezes, "Tuas carnes se tornam flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". "E como imaginas que estás?", replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso será verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.
 
No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e melancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas — que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, decerto com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos — foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou.
 
Eu gostaria de simplificar o problema de meu temperamento apresentando-me como a manifestação de uma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe — sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade — podem ser comparadas com os muros de uma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.
 
"Mas a coisa não é tão simples e nítida assim", observa o Outro.
 
"Eu sei, eu sei", respondo em pensamentos, "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade."
 
O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente céticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?"
 
Ambos encolhemos os ombros. Nem eu sei sobre a verdade, nem ele sabe, e nem ninguém mais: esta é a verdade." 
 
*            *            *

Prólogo de "Solo de Clarineta", livro autobiográfico, publicado em 1973