terça-feira, 30 de abril de 2013

TOM HUSSEY (fotógrafo) - Reflexões sobre o tempo


Tela de Salvador Dali
Tom Hussey e Reflexões sobre o Tempo
Mylanne Mendonça 


Chega uma época na vida em que tudo que temos está guardado em nossa memória, são as lembranças do que fomos um dia e que podem representar tudo o que nos resta. 
É o que expressa uma bela campanha que mostra o passado das pessoas através do reflexo no espelho.
A campanha é de um medicamento para tratamento do Alzheimer, da Exlon, Novartis. 

O fotógrafo publicitário Tom Hussey foi muito sensível aos efeitos dessa doença degenerativa quanto ao seu sintoma mais comum, a perda da memória recente ou incapacidade de memorizar informações novas e, portanto, recordá-las.

Idosos que sofrem de Alzheimer costumam perder a noção de tempo e espaço, mesmo que a memória semântica (modalidade de memória de longo prazo) e a memória implícita (memória de como fazer as coisas) não sejam tão afetadas quanto a memória de curto prazo, a ideia é demonstrar que o remédio é capaz de reavivar antigas memórias que a doença apaga dos pacientes.

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A inspiração surgiu de uma conversa com um veterano de guerra que contou um pouco da sua vida e experiência.
"Ele estava prestes a comemorar o seu 80º aniversário e comentou que não entendia como poderia fazer 80 anos de idade e sentir-se ainda um jovem (…). Percebi que toda a gente pensa o mesmo numa determinada fase da sua vida. 
Construí uma casa de banho e fotografei Gardner olhando para o espelho, vendo-se como um jovem de 25 anos de idade.”

A série foi divulgada em 2009/2010, mas merece ser lembrada, em especial no mês em que se comemora o dia do idoso.

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Um trabalho interessante mostrando que o passado não deve ser esquecido.

*            *            *


CECÍLIA MEIRELES - O rei do mar


O rei do mar
Cecília Meireles


Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

*            *            *

segunda-feira, 29 de abril de 2013

RUBEM ALVES - Alegria e Tristeza


Alegria e tristeza
Rubem Alves

Freud disse que são duas as fomes que moram no corpo. A primeira fome é a fome de conhecer o mundo em que vivemos. Queremos conhecer o mundo para sobreviver. Se não tivéssemos conhecimento do mundo à nossa volta, saltaríamos pelas janelas dos edifícios, ignorando a força da gravidade, e poríamos a mão no fogo, por não saber que o fogo queima.

A segunda fome é a fome do prazer. Tudo o que vive busca o prazer. O melhor exemplo dessa fome é o desejo do prazer sexual. Temos fome de sexo porque é gostoso. Se não fosse gostoso, ninguém o procuraria e, como conseqüência, a raça humana acabaria. O desejo do prazer seduz.

Gostaria de poder ter tido uma conversinha com ele sobre as fomes, porque eu acredito que há uma terceira: a fome de alegria.

Antigamente eu pensava que prazer e alegria eram a mesma coisa. Não são. É possível ter um prazer triste. A amante de Tomás, da A Insustentável Leveza do Ser, se lamentava: “Não quero prazer, quero alegria!”

As diferenças. Para haver prazer é preciso primeiro que haja um objeto que dê prazer: um caqui, uma taça de vinho, uma pessoa a quem beijar. Mas a fome de prazer logo se satisfaz. Quantos caquis conseguimos comer? Quantas taças de vinho conseguimos beber? Quantos beijos conseguimos suportar? Chega um momento em que se diz: “Não quero mais. Não tenho mais fome de prazer...”

A fome de alegria é diferente. Primeiro, ela não precisa de um objeto. Por vezes, basta uma memória. Fico alegre só de pensar num momento de felicidade que já passou. E, em segundo lugar, a fome de alegria jamais diz: “Chega de alegria. Não quero mais...” A fome de alegria é insaciável.

Bernardo Soares disse que não vemos o que vemos, vemos o que somos. Se estamos alegres, nossa alegria se projeta sobre o mundo e ele fica alegre, brincalhão. Acho que Alberto Caeiro estava alegre ao escrever este poema: "As bolas de sabão que esta criança se entretém a largar de uma palhinha são translucidamente uma filosofia toda. Claras, inúteis, passageiras, amigas dos olhos, são aquilo que são... Algumas mal se vêem no ar lúcido. São como a brisa que passa...E que só sabemos que passa porque qualquer cousa se aligeira em nós...”

A alegria não é um estado constante – bolas de sabão. Ela acontece, subitamente. Guimarães Rosa disse que a alegria só acontece em raros momentos de distração. Não se sabe o que fazer para produzi-la. Mas basta que ela brilhe de vez em quando para que o mundo fique leve e luminoso. Quando se tem a alegria, a gente diz: “Por esse momento de alegria valeu a pena o Universo ter sido criado”.

Fui terapeuta por vários anos. Ouvi os sofrimentos de muitas pessoas, cada um de um jeito. Mas por detrás de todas as queixas havia um único desejo: alegria. Quem tem alegria está em paz com o Universo, sente que a vida faz sentido.

Norman Brown observou que perdemos a alegria por haver perdido a simplicidade de viver que há nos animais. Minha cadela Lola está sempre alegre por quase nada. Sei disso porque ela sorri à toa. Sorri com o rabo.

Mas, de vez em quando, por razões que não se entende bem, a luz da alegria se apaga. O mundo inteiro fica sombrio e pesado. Vem a tristeza. As linhas do rosto ficam verticais, dominadas pelas forças do peso que fazem afundar. Os sentidos se tornam indiferentes a tudo. O mundo se torna uma pasta pegajosa e escura. É a depressão. O que o deprimido deseja é perder a consciência de tudo para parar de sofrer. E vem o desejo do grande sono sem retorno.

Antigamente, sem saber o que fazer, os médicos prescreviam viagens, achando que cenários novos seriam uma boa distração da tristeza. Eles não sabiam que é inútil viajar para outros lugares se não conseguimos desembarcar de nós mesmos. Os tolos tentam consolar. Argumentam apontando para as razões para se estar alegre: o mundo é tão bonito... Isso só contribui para aumentar a tristeza. As músicas doem. Os poemas fazem chorar. A TV irrita. Mas o mais insuportável de tudo são os risos alegres dos outros que mostram que o deprimido está num purgatório do qual não vê saída. Nada vale a pena.

E uma sensação física estranha faz morada no peito, como se um polvo o apertasse. Ou esse aperto seria produzido por um vácuo interior? É Thanatos fazendo o seu trabalho. Por que quando a alegria se vai ela entra...

Os médicos dizem que a alegria e a depressão são as formas sensíveis que tomam os equilíbrios e os desequilíbrios da química que controla o corpo. Que coisa mais curiosa: que a alegria e a tristeza sejam máscaras da química! O corpo é muito misterioso...

Aí, de repente, sem se anunciar, ao acordar de manhã, percebe-se que o mundo está de novo colorido e cheio de bolhas translúcidas de sabão... A alegria voltou!

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segunda-feira, 22 de abril de 2013

"ESPELHO, ESPELHO MEU..." - Graça Taguti


Espelho, espelho meu: existe alguém tão sem rosto quanto eu?
Graça Taguti -  "Revista Bula"

Sinistro, definiria a gíria da galera jovem. Ou seria macabro? Talvez gótico expresse melhor a semântica dos espelhos, cuja polissemia perpassa campos distintos da cultura e das artes.
Aonde se esconderam meus camuflados caleidoscópios psíquicos, encarregados de iluminar até as sombras de todos os mosaicos que habitam meu corpo, gestor máximo de uma catedral-pagã?
O espelho traduz suas simbologias, participando de discursos poéticos, mitológicos, literários, religiosos e artísticos, entre outros.

Assume fartas conotações na metafórica agenda de possibilidades de que se constitui.
Espelho é interface — comunicação — passagem — janela — revelação — acesso — imersão — multiplicação — olho — retrato — fragmentação. Uma relação inegavelmente tensa entre o homem e sua própria imagem.

Na mitologia, podemos destacar “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio, que constitui o primeiro escrito a evocar o mito de Narciso — um jovem, excepcionalmente bonito e sedutor, que acaba se apaixonando, após mirar-se em uma fonte, pela própria imagem na água, supondo tratar-se de alguém, que não ele mesmo. De tanto contemplar-se, todavia, deixou-se morrer.

No “Dicionário dos Símbolos”, Jean Chevalier nos apresenta algumas acepções recolhidas da sinonímia dos espelhos: “o que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Ele é, com efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido pela ignorância”.

Ainda na vertente da bruma metafórica, da confusão permanente em que os espelhos nos enredam, Cecília Meireles oferece seu poema “Retrato”: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo./Eu não tinha estas mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas/ eu não tinha este coração/ que nem se mostra/ Eu não dei por esta mudança/tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Sylvia Plath, exponencial e melancólica poeta americana — que se despediu da vida aos 30 anos em 1963 — divaga ferozmente, diante da reluzente interface: “Sou prateado e exato./ Não tenho preconceitos. / Tudo o que vejo engulo imediatamente./ Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão./ Não sou cruel, apenas verdadeiro — O olho de um pequeno deus, de quatro cantos. (…) Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,/ Buscando na minha superfície o que ela realmente é. Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua. (…) Sou importante para ela. Ela vem e vai./ A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão. Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha sobe em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível”.

Sempre anunciando os temores do incognoscível, como depreendemos nos versos aflitos de Plath, o espelho, interface-matriz, das inúmeras outras que dele se desdobram, alça novos voos e alcança a literatura, como no famoso conto Machadiano de mesmo nome. A certa altura, o escritor sentencia: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”.
O singular conto retrata o pitoresco caso de um homem que reconhece a própria existência, na vida dita real, apenas quando veste uma farda de alferes e se contempla diante do espelho da casa aonde morava. De outro modo, trajando roupas comuns, a personagem não mais consegue se enxergar, quando desafiada pelo instigante objeto.

Ao se desdobrar nas artes, o espelho também imiscui no cinema. Em alguns filmes emblemáticos, nosso protagonista denuncia diversos aspectos sub-reptícios ou dissimulados da condição humana.

Na “Queda da Casa de Usher”, de Jean Epstein, longa-metragem baseado em um conto de Poe, assistimos a decadência de uma família aristocrática, culminando num incêndio devastador atestado finalmente por um espelho — que denominaríamos o espelho dos finais.

Temos “A Dama de Shangai”, de Orson Welles — obra noir, repleta de louras assassinas, detetives, jogos de luz e sombras, comparsas enroscados em toda ordem de permissividades — retratados num ilusório labirinto construído por inúmeros espelhos — cuja função, além de aturdir o espectador, consiste em conferir maior suspense à trama: classificaríamos estes como espelhos da ambiguidade, ou melhor, da amoralidade — que reputam como éticos qualquer gesto ou intenção espúria?

Apontamos ainda o memorável “Janela Indiscreta”, de Hitchcock .
Através dela um homem em uma cadeira de rodas, observa passivamente por meio de um binóculo, seu dispositivo de controle, uma série de acontecimentos.
Alguns inclusive graves, como um crime, se desenrolando no prédio à frente: eis o espelho da alienação.

Ou ainda descortinamos uma das geniais sequências de “Drácula”, de Bram Stoker, na qual o espelho recusa-se a refletir a imagem dos seres inumanos e proscritos, sequer revelando suas sombras: temos aí o espelho crepuscular da alma .

Agora, um clássico da literatura infantil que ganhou as telas: “Branca de Neve e os Sete Anões”. Nesta história assoma a inveja da rainha da personagem título, que nos traz, em toda a pompa, o espelho das vaidades.
“Mirror, Mirror, on the wall Who is the fairest of us all?/O Lady Queen, though fair ye be,/Snow-White is fairer, far to see.”

Revisitando a poesia, flagramos Borges e Mario Quintana rendidos à infinitude dos espelhos.
Por fim, Fernando Pessoa, sempre tão plural em sua contrita aparência, declara em breve poema, da lavra de Alberto Caeiro, um de seus heterônimos.
“O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa. Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.”

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sábado, 20 de abril de 2013

GEORGE ORWELL - '1984'

George Orwell

"1984", o livro que matou George Orwell
Robert McCrum

Em 1946, o editor David Astor emprestou a George Orwell uma afastada fazenda escocesa na qual pudesse escrever seu novo livro, “1984”. 
O editor do semanário britânico “The Observer”, Robert McCrum, conta história da torturante estadia de Orwell na ilha onde prestes a morrer engajou-se numa corrida febril para terminar o livro.


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“Era um dia claro e frio de Abril, e os relógios marcavam uma da tarde.” 
Sessenta e um anos após a publicação da obra-prima de Orwell, “1984”, essa primeira frase parece mais natural e atrativa que nunca. Mas quando vemos o manuscrito original, encontramos algo a mais: não tanto o toque de claridade, mas as correções obsessivas, em diferentes borrões de tinta, as quais revelam o tumulto extraordinário por trás da composição.

Sendo provavelmente o romance definitivo do século XX, e uma história que permanece eternamente recente e contemporânea, cujos termos como “Big Brother”, “Duplipensar” e “Novilíngua” tornaram-se parte do cotidiano. “1984″ foi traduzido para mais de 65 línguas e teve milhões de cópias vendidas pelo mundo, conferindo a George Orwell um lugar único no mundo literário.

“Orweliano” é agora um símbolo universal para qualquer coisa repressiva ou totalitária, e a história de Winston Smith, um homem comum para seus tempos, continua a ressoar para os leitores cujos medos do futuro são bem diferentes dos daquele de um escritor inglês, de meados dos anos 1940.

As circunstâncias que cercam o processo criativo de “1984” constroem um narrativa fantasmagórica que ajuda a explicar a desolação da distopia de Orwell. Ali estava um escritor inglês, desesperadamente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua imaginação em uma casa escocesa localizada em meio aos resquícios da Segunda Guerra.

A ideia de “1984”, cujo título alternativo era “O Último Homem na Europa”, havia sido incubada na cabeça de Orwell desde a guerra civil espanhola. Esse romance, que tem algo da ficção diatópica de Yevgeny Zamyatin, provavelmente começou a adquirir uma forma definitiva durante o período de 1943 e 44, tempo no qual ele e sua esposa Eileen adotaram seu único filho, Richard. O próprio Orwell alegou ter se inspirado com a reunião dos líderes dos Aliados na Conferência de Tehran em 1944. Isaac Deutscher, um amigo, reportou que Orwell estava “convencido de que Stálin, Churchil e Roosevelt conscientemente traçaram um mapa para dividir o mundo” em Tehran.

Orwell trabalhou para o “Observer” (Jornal Britânico) de David Astor desde 1942, primeiro como revisor de livros, e depois como correspondente. O editor declarou ter grande admiração pela “absoluta retidão, honestidade e decência” de Orwell. A proximidade de sua amizade foi crucial para a história de “1984”.

A vida criativa de Orwell já havia beneficiado sua associação com o “Observer” na confecção de textos de “Animal Farm” (“A Revolução Dos Bichos”). Como o chamado para a guerra estava próximo, a interação frutífera de ficção e jornalismo de domingo poderia contribuir para a mais obscura e complexa obra que ele tinha em mente. Nas revisões dos livros do “Observer”, por exemplo, ele era fascinado pela relação entre moralidade e linguagem.

Havia outras influências em seu trabalho. Logo após a adoção de Richard, as economias de Orwell foram completamente destruídas. A atmosfera de terror inconstante na vida diária dos tempos de guerra em Londres tornou-se integral com o sentimento do romance em progresso. O pior estava por vir. Em março de 1945, enquanto estava cumprindo o contrato com o “Observer” na Europa, Orwell recebeu a notícia de que sua esposa, Eileen, havia morrido por causa da anestesia em uma cirurgia corriqueira.

De repente ele ficara viúvo e pai solteiro, ganhando a vida com muita dificuldade nos alojamentos de Islington, e trabalhando incessantemente para esquecer o fluxo de remorso e dor causados pela morte prematura de sua esposa. Em 1945, por exemplo, ele escreveu quase 110.000 palavras para várias publicações, incluindo 15 revisões de livros para o “Observer”.

Então Astor interferiu. Sua família possuía um pedaço de terra em uma remota ilha escocesa chamada Jura, perto de Islay. Havia uma casa, Barnhill, sete milhas de Ardlussa no remoto recanto nórdico cheio de montanhas rochosas em Inner Hebrides (um arquipélago à costa oeste da Escócia). Inicialmente, Astor ofereceu a casa a Orwell por um final de semana.

Em maio de 1946, Orwell, ainda juntando os cacos de sua vida, pegou o trem para a longa e árdua viagem para Jura. Ele disse a seu amigo Arthur Koestler que isso era “quase como pegar um navio lotado para o ártico”.

Era uma mudança arriscada; Orwell não estava bem de saúde. O inverno de 1946/47 foi um dos mais frios do século. O Posto de Saúde britânico estava acabado naqueles tempos de guerra, e ele sempre sofreu de problemas respiratórios. Ao menos, afastado das irritações da Londres literária, ele estava livre para se debruçar sobre o novo romance sem quaisquer impedimentos. “Sufocado pelo jornalismo”, como ele disse a um amigo, “Me tornei mais ou menos como uma laranja chupada”.

Ironicamente, parte das dificuldades de Orwell vieram do sucesso de “Animal Farm”, seu livro. Após anos de negligência e indiferença, o mundo estava despertando para a genialidade dele. “Todos ficam vindo até mim”, ele reclamava para Koestler, “querendo que eu escreva, com comissão para folhetos, querendo que eu aceite isso ou aquilo — você não sabe como desejo me livrar disso tudo e ter tempo para pensar novamente”.

Em Jura ele estaria livre dessas distrações, mas a promessa de liberdade criativa numa ilha em Hebrides veio com um preço a pagar. Anos antes, no artigo “Por que Eu Escrevo”, ele descreveu o esforço necessário para completar um livro: “Escrever um livro é horrível, o esforço é exaustivo, como a crise de alguma doença dolorosa. Uma pessoa jamais se sujeitaria a tal se não for dirigida por algum demônio, o qual não se pode resistir ou compreender. Esse demônio é o mesmo instinto que faz um bebê espernear por atenção”.

Desde a primavera de 1947 até sua morte em 1950, Orwell reorganizou cada aspecto de seu empenho da forma mais dolorosa que se possa imaginar. Particularmente, talvez, ele tenha experimentado a sobreposição entre a teoria e a prática. Ele sempre obteve sucesso na adversidade autoimposta.

Primeiramente, após um “inverno quase intolerável”, ele se satisfez na solitária e selvagem beleza de Jura. “Estou me debatendo com esse livro”, escreveu a seu agente, “que eu possa terminar no final do ano — de qualquer forma eu terei passado pela pior parte até que possa me manter à distância do trabalho jornalístico até o outono”.

Barnhill, acima do mar no alto de uma estrada sem movimento, não era grande, com quatro quartos em cima de uma espaçosa cozinha. A vida era simples, até mesmo primitiva. Não havia eletricidade. Orwell usava aquecedor a gás para cozinhar e aquecer água. As lamparinas queimavam a parafina. À tarde ele queimava turfa. Ele ainda fumava grandes e finos cigarros negros: a fumaça na casa era cômoda, mas nem um pouco saudável. Um rádio à bateria era a única conexão com o mundo externo.

Orwell, um cavalheiro, não apegado às coisas mundanas, chegou apenas com um saco de dormir, uma mesa, um par de cadeiras e alguns potes e panelas. Era uma existência à parte, mas supria todas as condições sob as quais ele gostava de trabalhar. Ele é lembrado aqui como um fantasma no nevoeiro, como uma figura esquelética em uma capa.

Os nativos o conheciam por seu nome verdadeiro, Eric Blair, um homem tristonho, cadavérico e alto que se preocupava em como enfrentar a si mesmo. A solução, quando se juntaram a ele o bebê Richard e sua babá, foi recrutar sua irmã, Avril.

Assim que seu novo regime foi estabelecido, Orwell pôde finalmente traçar um começo para o livro. No final de maio de 1947 ele disse a seu editor, Fred Warburg: “Acho que devo ter escrito um terço do esboço.

Eu não cheguei tão longe, pois fui acometido da ‘saúde desgraçada’ desde Janeiro (meu peito, como sempre) e não pude me livrar disto”.

Preocupado com a impaciência de seu editor com a novela, Orwell acrescentou: “É claro que o esboço é sempre uma bagunça com pouca ligação com o resultado final, mas ao mesmo tempo, é o principal de todo o trabalho”. Mas então, houve um acidente.

Parte do prazer de viver em Jura era que ele e seu jovem filho podiam aproveitar a vida ao ar livre juntos, eles podiam pescar, explorar a ilha, e passear por ai em barcos. Em agosto, durante um fascinante verão, Orwell, Avril, Richard e alguns amigos, enquanto voltavam do alto da costa em um pequeno barco a motor, foram jogados em meio ao famoso redemoinho de Corryvreckan.

Richard Blair lembra quando ficou “com o sangue congelado” nas águas de frio intenso, e Orwell, cuja constante tosse preocupava os amigos, teve os pulmões ainda mais comprometidos. Dentro de dois meses ele ficaria seriamente doente. Tipicamente, sua carta a David Astor dessa escapada difícil foi breve, e até mesmo indiferente.

O grande esforço com “O Último Homem na Europa” continuou. No final de outubro de 1947, molestado pela “saúde desgraçada”, Orwell admitiu que seu romance ainda era “uma bagunça mortal e quase dois terços disso teriam que ser completamente redigitados”.

Ele trabalhava a passos largos, inconstantes. Os visitantes de Barnhill se lembram do som de sua máquina de datilografar vindo de seu quarto, na parte de cima da casa. Então, em novembro, cuidado pela zelosa Avril, ele teve uma prostração repentina por causa de uma “inflamação nos pulmões” e disse a Koestler que estava “muito mal, de cama”. Logo antes do Natal, em uma carta a um colega do “Observer”, ele acabou com as notícias de que já havia morrido. Finalmente teve seu diagnóstico de tuberculose.

Alguns dias depois, escrevendo para Astor do hospital Hairmyres, ele admitiu: “Sinto-me muito doente”, e reconheceu que, depois que a doença o pegou após o incidente do redemoinho de Corryvreckan, “como um tolo, eu decidi não ir ao médico — eu queria terminar o livro que estava escrevendo”. Em 1947 não havia cura para tuberculose — os médicos prescreviam ar puro e uma dieta regulada — mas havia uma droga experimental no mercado, a estreptomicina. Astor pediu uma encomenda de Hairmyres, dos EUA.

Richard Blair acredita que seu pai recebeu doses excessivas do novo remédio milagroso. Os efeitos colaterais eram horríveis (úlcera na garganta, bolhas na boca, perda de cabelo, descascamento da pele e desintegração dos dedos e unhas), mas em março de 1948, depois de três meses, os sintomas da tuberculose desapareceram. “É como afundar o barco para se livrar dos ratos, mas vale, se funcionar”.

Enquanto se preparava para deixar o hospital, Orwell recebeu uma carta de seu editor que, atrasado, seria outro prego em seu caixão. “É extremamente importante”, escreveu Warburg para seu autor, “do ponto de vista de sua carreira literária, conseguir isso (o romance) até o final do ano, o mais breve possível”.

Quando deveria estar em repouso, Orwell voltou a Barnhill, e mergulhou na revisão de seu manuscrito, prometendo a Warburg entregar no “começo de dezembro”, em meio ao mau tempo do outono em Jura. No comecinho de outubro ele confidenciou a Astor: “Eu me acostumei tanto a escrever na cama que penso preferir isso, embora, é claro, seja um tanto desajeitado para datilografar aqui. Estou lutando com os últimos estágios desse livro sangrento”.

A digitação da cópia original de “O Último Homem da Europa” se tornou outra dimensão da batalha de Orwell com seu livro. Quando mais ele revisava seu “inacreditavelmente horrível” manuscrito, mais se tornava um documento que apenas ele podia ler e interpretar. Era, como ele disse a seu agente, “extremamente longo, com mais de 125.000 palavras”. Com característica franqueza, ele declarou: “Não estou satisfeito com o livro, mas não estou absolutamente não satisfeito… Acho que ele é uma boa ideia, mas a execução seria melhor se eu não tivesse escrito sob a influência da tuberculose”.

E ele ainda estava indeciso sobre o título: “Estou inclinado a chamar o livro de ‘1984’ ou ‘O Último Homem da Europa’,” e escreveu, “mas provavelmente posso pensar em outro título nas próximas semanas”. No final de outubro, Orwell acreditava que tivesse acabado. Agora ele apenas precisava de um estenógrafo para ajudar a colocar tudo em ordem, de modo que fizesse sentido.

Era uma corrida desesperada contra o tempo. A saúde de Orwell estava se deteriorando, e “inacreditavelmente horrível”, o manuscrito precisava ser redigitado, e o final de dezembro já rondava. Warburg prometeu ajudar, e também o agente de Orwell. Não se entendendo com os digitadores, eles conseguiram deixar a situação ainda pior. Orwell, sentindo a ajuda fora de alcance, resolveu seguir os seus instintos de “ex-garoto-de-escola-pública”: faria sozinho.

No meio de novembro, muito fraco para andar, ele se refugiou na cama com o equipamento para a “horrível tarefa” de digitar o livro em sua “decrépita máquina de datilografia”, sozinho. Sustentado por infinitos inimigos, xícaras de café, chá forte e pelo calor da parafina, com ventos fortes esbofeteando Barnhill, noite e dia, ele continuou. Em 30 de novembro de 1948, estava virtualmente pronto.

As páginas digitadas de George Orwell chegaram a Londres no meio de dezembro, como prometido. Warburg reconheceu sua qualidade imediatamente (“dentre os mais horrorosos livros que já li”) e assim fizeram também muitos de seus colegas. Um memorando interno declarou: “se não conseguirmos vender de 15 a 20 mil cópias, temos que levar um tiro”!

Então Orwell partiu de Jura rumo a um hospital especializado em tuberculose, em Cotswolds. “Eu deveria ter feito isso há dois meses,” disse a Astor, “mas eu queria terminar aquele livro sangrento”. Novamente Astor se dedicou em monitorar o tratamento de seu amigo, mas o especialista responsável por Orwell estava bastante pessimista.

Assim que os comentários sobre o “1984” começaram a circular, os instintos jornalísticos de Astor vieram à tona e ele começou a planejar um perfil do “Observer”, um elogio significativo, mas a ideia foi recebida por Orwell com um “certo alarme”. Assim que a primavera chegou, ele começou a cuspir sangue, e sentia-se “desconfortável na maior parte do tempo”, mas ainda era capaz de envolver-se nos rituais de pré-publicação do romance, registrando “boas notícias” com satisfação. Ele brincava com Astor que não o surpreenderia se ele “tivesse que trocar aquele perfil por um obituário”. “1984” foi publicado em 8 de junho de 1949 (cinco dias depois nos EUA) e foi quase que universalmente reconhecido como uma obra-prima, até mesmo por Winston Churchill, que disse a seu médico ter lido duas vezes. A saúde de Orwell continuava a decair. Nas poucas horas de 21 de janeiro, sofreu uma hemorragia massiva no hospital e morreu sozinho.

As notícias foram transmitidas ao mundo pela BBC, na manhã seguinte. Avril Blair e Richard, ainda em Jura, ouviram a notícia pelo rádio à bateria em Barnhill. Richard Blair não se lembra se o dia estava claro ou frio, mas lembra do choque da notícia: seu pai estava morto, com 46 anos.

David Astor arranjou tudo para o funeral de Orwell nos jardins na igreja de Sutton Courtenay, Oxfordshire. Ele jaz lá agora, como Eric Blair, entre HH Asquith e uma família nativa de Gypsies.
*            *            *
Texto publicado originalmente pelo semanário britânico “The Observer” e traduzido para a Revista Bula  por Amanda Górski.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

ZÉ RAMALHO - Um Índio (Caetano Veloso)

Um Índio
Caetano Veloso

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante

Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá, impávido que nem Muhammed Ali, virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri, virá que eu vi
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee, virá que eu vi
O axé do afoxé, filhos de Ghandi, virá

Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro
Em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto, sim, resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer
Assim, de um modo explícito

(Refrão)

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

*            *            *

RACHEL DE QUEIROZ - Alfazema, velhice e mocidade


Alfazema, velhice e mocidade
Rachel de Queiroz 
(Ceará, 1910 - Rio de Janeiro 2003)

Todo mundo sabe: já não se namora mais como antigamente. Se a palavra é a mesma, o sentido é outro. 

Dantes era todo aquele ritual cortês - primeiro os olhares que se encontravam de longe, começando intermitente e furtivo, ia depois ficando mais fixo (na minha longínqua infância esses olhares se chamavam "tirar linha", - lembrai-vos anciãs contemporâneas?) 
Do olhar se passava ao sorriso, em manobras que poderiam levar horas e até dias consecutivos. Depois era tentar um encontro: passar perto, olhar sem falar, pois a moça quase nunca andava só. 
Após um infinito de tempo, chegava-se então à abordagem. 
Por exemplo, o rapaz subia ao estribo do bonde, pedia licença para sentar no banco em que ela vinha. Licença dada, ele enxugava a testa e fazia a declaração. 
Aceito o dito de amor, começa propriamente o namoro. 

Me lembro de quando eu tinha uns 12 para 13 anos e, por acaso raríssimo, voltava sozinha do colégio. 

Desci do bonde no fim da linha e ia rápido para casa, um pouco além, quando senti que um rapaz me acompanhava. 
Ao me alcançar, ele me tocou de leve no braço, me fixou com uns olhos de um azul desbotado, quase branco e falou rouco: "Senhorita, amo-a, e posso ser correspondido?" 
Levei um susto danado, desviei a vista daqueles olhos sem cor, e meti o pé na carreira. 
Bati com força o portãozinho do jardim, entrei em casa como um pé de vento, tranquei-me no quarto. Me atirei na cama, sem fôlego, o coração na boca. 
Afinal era aquela a minha primeira "declaração". 

Há uma carta do meu tataravô pedindo em casamento aquela que veio a ser minha tataravó que terminava nos seguintes termos: 

"Recebi os ternos afetos que respeitosamente vos prosterna, o vosso fiel amante.
Fco. J-M." 
Tenho comigo a carta, é linda. 
Como se vê a palavra "amante" era então empregada no seu sentido real - amante é aquele que ama. 
Com o andar do tempo, a palavra foi mudando de sentido e passou a significar os dois que se amam de amor ilegal, ou mais objetivamente aquele que pratica amor com a mulher de outro. Ou a própria mulher do outro também é amante do amante. 

Por idêntica evolução semântica, passou a palavra namorado e os que poucos anos atrás seriam chamados discriminatoriamente de amante, passa a se chamar docemente "namorado". 

Os que se amam, qualquer que seja o tipo e o aspecto legal da sua relação, são namorados e pronto.

Isto posto, falemos daqui, da Praia do Leblon: os namorados não são tantos que engarrafem o trânsito no calçadão, mas chegam a abalroar com os corredores e joguistas que pedem desculpas e seguem em frente, tão velozes que a gente espera até que apitem.

Já na areia, a área é mais desimpedida. 

Um par de adolescentes, enlaçados como dois lutadores, não chego a dizer que "faz amor", mas se entrega a uma ginástica desesperada, cada um procurando morder a nuca do outro, ao que parece.
De repente, rolam na areia e já não são amantes, são como filhotes brincalhões em briga simulada.

Um casal de velhos faz a sua marcha higiênica. 

Ele veste calção esportivo e camiseta, calça tênis modernosos, sombreia a face com pala de plástico verde. Nos trinques. 
Seria talvez um modelo de elegância se o velho corpo não lhe desmentisse as graças - desde as coxas magras, onde o fêmur ressalta, à frente das pelancas de músculos, o pescoço que é só veia e tendão, a calva que emerge da abertura da pala, estriada de veias roxas, salpicada de manchas cor de ferrugem. 
A velha que o segue ao lado, com suas pernas curtas tentando acompanhá-lo a passadas largas, veste bermuda e blusão e usa chapéu de palha. 
Como dizia o Dr. Macedinho, de um de seus personagens da Moreninha, não é feia nem bonita - é uma velha. 
Mas é claro que o idoso magruço continua a ser o seu galã preferido, tal a ternura com que o contempla, segura-lhe as pontas dos dedos, acompanhando-lhe o ritmo dos braços que cortam o vento do mar, como um nadador. 
E o sorriso que lhe ilumina a face esfogueada, no esforço de acompanhar o dono. Ou o líder.
  
Há também pares correndo. Curioso: quase todos brigam enquanto correm.

De repente, surge no mesmo calçadão a musa ruiva, sardenta e linda. 

É toda longas pernas, pequeno busto empinado, barriga para dentro, bumbum em saliências esferoidais. 
Enverga uma sunga (calção, bermudinha?) não sei como se chama: brilha como cetim, é ornada de rendas, parece que ela saiu da alcova com sua calcinha, em meio à toalete. 
Engraçado, seria de esperar que semelhante deusa arrastasse após si um batalhão de moços, contudo só uns dois se vê, a distância prudente. 
Dois enxundiosos quarentões que descansam no meio-fio, é que vêem em primeiro lugar a sombra da moça que o sol desenha, movediça no pavimento, e se viram ambos, esticam o toutiço, arreganham a dentadura, dizem coisas entre si, sem tirar os olhos da menina que agora já lhes dá as costas, com todos os esplendores da fachada retrô.

E fica no ar um cheiro de alfazema e mocidade.



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terça-feira, 16 de abril de 2013

GRACILIANO - por Nei Duclós

Cadeia, o grande sertão de Graciliano
Trechos do Ensaio de Nei Duclós em 18/02/2013, Revista Bula


Descoberto pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, graças aos seus relatórios quando foi prefeito em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de exemplares, só no Brasil. 
Alguns deles, como “Vidas Secas”, “Insônia”, “São Bernardo” e “Memórias do Cárcere”, viraram filmes. 
Ele se destacou também por virtudes que por um tempo foram esquecidas no Brasil. 
Hoje elas ressurgem como um exemplo para um país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.
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Cigarros ordinários acesos um no outro para economizar fós­foros, um restinho de iodo para desinfetar um ferimento no dedo, papel e caneta embrulhados em pijamas e outros trapos numa valise que carrega por todo lado, por mais de cinco prisões para onde foi jogado junto com milhares de outros presos políticos, misturados a vigaristas, ladrões e malandros, acompanham o escritor na sua faina: o de escrever notas que mais tarde vão continuar a literatura iniciada nos confins do Brasil seco e violento. Os livros que esmerilha na sua rotina brutal são narrados como personagens ocultos, um amontoado de letra miúda, mal alinhavadas e passíveis de todas as correções.

O protagonista é o livro — pode ser “Angústia”, publicado em 1938, ou as anotações que geraram mais tarde “Memórias do Cárcere”. Ele está sendo esmiuçado nos apertos sem conta, em meio ao pavor, o horror, a miséria, a sujeita e o escândalo. O que lemos em “Me­mórias do Cárcere” é uma obra sobre literatura, que começa a ser esboçada na cadeia. 
As notas se transmutam mais tarde, reescritas e editadas (dez anos depois de sua soltura, em 1938) para a posteridade — foi publicado em 1953 pelo seu filho Ricardo, que mudou o título original, “Cadeia”.
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Para tornar explícita a miséria social e política, afunda-se na baixa autoestima, como se o personagem que cria — ele mesmo, a vítima de uma injustiça — seja o fruto da escassez que domina o país. 

A família que descreve — a esposa mesquinha e histérica, os filhos agitadores — tem perfil fictício, o que o deixa à vontade para reforçar o papel de uma situação doméstica opressiva, contra a qual a prisão acaba se oferecendo como uma bizarra solução. O drama se desenrola no varejo, com vingancinhas pessoais, pequenas traições nos gestos e palavras, ruas mal iluminadas, prédios sinistros, funções inúteis, cidadania zerada.

O narrador está no miolo de um drama que se expõe das bordas às vísceras, em que a rotina doméstica é substituída pela falta absoluta de sentido do encarceramento. Graciliano Ramos conta sua história compondo um mural literário inspirado na memória. 
É o tempo todo literatura, pois os fatos se unem pelo fio narrativo de uma improbabilidade, o mundo sendo definido pela visão amarga e ríspida de alguém que sobrevive à revelia.
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Sua autocrítica é arrasadora. Sentindo-se incompetente para viver em grupo, enxerga-se como um outsider permanente, a passar sua bateia entre os cascalhos das palavras tartamudeadas por ele e ouvidas nas várias cenas que se sucedem na prisão. 
Uma de suas magistrais lições de literatura neste livro é a composição de personagens. Temos um exemplo no parágrafo inicial do capítulo 9, da segunda parte, do volume 1. Ele ensina como um mestre formata um personagem, que neste trecho do livro tem a função de sintetizar as dissenções internas dos presidiários políticos. 
“O capitão de nariz comprido esteve conosco dois ou três dias. Nunca lhe ouvi uma palavra, mas vi-o falar em excesso a grupos pequenos, afirmativo, açodado, a examinar os arredores com jeito de conspirador. Sem revelar em público nenhuma opinião, estava sempre a sussurrar um cacarejo indistinto, passeava na assistência minguada os inexpressivos olhos de ave, erguia o bico longo, baixava-o, reproduzia movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. Os cochichos permanentes aborreciam-me, os gestos ambíguos, o proceder furtivo, o conluio visível de meia dúzia de pessoas. Afinal o tipo se sumiu. Na verdade estivera a sumir-se constantemente, a esgueirar-se de um cubículo para outro. Findos esses manejos, bateu asas na fuga definitiva, nem nos deu tempo de gravar-lhe o nome: para mim ficou sendo o capitão de nariz furtivo.”
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No seu livro “Infância”, ele conta como foi difícil aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa para um país ainda pobre e perdido.

“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente”, diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever, através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos modernistas brasileiros.” 
Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac, Dostoiévski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava comprar uma gramática paulista para entendê-los.

Logo o “velho Graça” — ex­pressão lembrada, numa crônica, pela sua contemporânea Rachel de Queiroz —, tão cheio de regionalismos: “Graciliano é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. “A partir de ‘Caetés’, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua.” Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o prolongamento dos animais e da paisagem.

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quinta-feira, 11 de abril de 2013

OTTO LARA RESENDE - Vista cansada


Vista cansada
Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. 
Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. 
Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.  Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía – e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. 

Um poeta é só isso: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar... vê, não vendo.

Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver. Parece fácil, mas não é. 
O que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. 

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. 

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer. 
Como era ele? Sua cara, sua voz, como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. 
Se um dia, no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser que ninguém desse por sua ausência. 

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas, há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. 

Uma criança vê o que um adulto não vê, pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. 
O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê. 
Há pai que nunca viu o próprio filho, marido que nunca viu a própria mulher, , isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. 

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.


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quarta-feira, 10 de abril de 2013

segunda-feira, 8 de abril de 2013

PABLO NERUDA


Recebido por e-mail, da amiga Talma

Pablo Neruda

Saudade

Saudade é solidão acompanhada, 
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas o amado já... 

Saudade é amar um passado que ainda não passou, 
é recusar um presente que nos machuca, 
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais... 

Saudade é o inferno dos que perderam, 
é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam... 

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: 
aquela que nunca amou. 

E esse é o maior dos sofrimentos: 
não ter por quem sentir saudades, 
passar pela vida e não viver. 
**

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
**

Tela de Leonid Afremov
Quero apenas cinco coisas.. 
Primeiro é o amor sem fim 
A segunda é ver o outono 
A terceira é o grave inverno 
Em quarto lugar o verão 
A quinta coisa são teus olhos 
Não quero dormir sem teus olhos. 
Não quero ser... sem que me olhes. 
Abro mão da primavera para que continues me olhando.
**

Tela de Eduardo Arguelles - médico, professor e artista brasileiro

É Proibido

É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,

Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se
desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.
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E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

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sábado, 6 de abril de 2013

MARK O'BRIEN - Poema de amor para ninguém em especial


Julia V, internauta, fez a tradução do belíssimo poema, Poema de amor para ninguém em especial, de Mark O’Brien, que aparece no filme, 'As sessões'. 
Para quem não assistiu ao filme nem conhece a história do poeta, vale dizer que ele teve poliomielite na infância e passou a vida sem poder se mexer do pescoço para baixo, embora tivesse a sensibilidade preservada.


Poema de amor para ninguém em especial
(Tradução: Julia V. - internauta)


Deixe-me tocá-la com minhas palavras
Pois minhas mãos inertes pendem
como luvas vazias
Deixe minhas palavras acariciarem seu cabelo
deslizar tuas costas abaixo
e brincar em teu ventre
pois minhas mãos,
de voo leve e livre como tijolos
ignoram meus desejos
e teimosamente se recusam a tornar realidade
minhas intenções mais silenciosas
Deixe minhas palavras entrarem em você
carregando lanternas
aceite-as voluntariamente em seu ser
para que possam te acariciar devagarinho
por dentro.

**
Love poem to no one in particular
Mark O'Brien 

Let me touch you with my words
For my hands lie limp
as empty gloves
Let my words stroke your hair
Slide down your back
And tickle your belly
For my hands,
light and free flying as bricks
Ignore my wishes
And stubbornly refuse to carry out
my quietest desires
Let my words enter your mind
Bearing torches
Admit them willingly into your being
So they may caress you gently
Within

 *            *            *

segunda-feira, 1 de abril de 2013

ROSISKA E CHICO - Rosiska Darcy de Oliveira


Um tempo sem nome
Rosiska Darcy de Oliveira, em O Globo, 21/01/12

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade.  Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.

”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.
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Essa Pequena
Chico Buarque

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena

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