quarta-feira, 30 de abril de 2014

Existência iletrada - por Mariana Gonçalves

Da página "Homo Literatus"


Existência iletrada
Mariana Gonçalves - 08 de abril 2014

Aos sessenta e oito anos de idade, minha avó me observa, com olhares tímidos e fugazes, ler um livro no sofá. 
A tarde está indo embora e descendo um céu gradual e escuro janela afora, a TV ligada baixo no noticiário das sete nos dá um conforto típico de anoitecer chuvoso.

Ela finge que presta atenção à repórter à sua frente, mas olha em minha direção de quando em quando, com curiosidade. Eu finjo que nada vejo. Acho graça. 
Minha avó não sabe ler. Encara as palavras como algo além de sua compreensão. Sente vontade, deixa transparecer seu desejo de decifrar aqueles símbolos em meu livro a cada olhar. 

Lembro-me de quando eu era criança, tentando ensiná-la a escrever o nome, e de seu caderno de 96 folhas com o qual passava as tardes em companhia dela, vendo-a rabiscar seu nome com mãos trêmulas, lutando contra a rigidez dos dedos. No começo, tinha pena dela. Porém, tarde após tarde, eu amava tentar ensinar como se faz a voltinha do “o” e a cauda do “j”. 
Se minha avó sente hoje orgulho ao escrever o próprio nome, esse mérito é, em parte, meu. 

Deixo o livro um instante e encontro seu olhar. “Tá estudando é, fia?”, pergunta ela, amável, tentando disfarçar sua curiosidade com a casualidade de uma pergunta simples. “Não, vó. Só lendo.” 
Entendo, então, que essa explicação nada diz à minha avó, cujos olhos nunca tiveram o prazer de transcorrer uma frase em um livro. E que “só ler” é um grande e nobre ato para ela. 
Sinto-me culpada. Embora tenha tentado ensiná-la, sua mente senil já está completa e cansada com anos de trabalho, desde a fazenda na Paraíba a apartamentos de madames no Sudeste. Seu corpo e sua mente agora só querem descansar. 
Como será viver sem leitura? 
Enxergo nos olhares de minha avó um sentimento de desalento resignado, de exclusão. 
Recordo-me de uma pergunta sua, sobre o que diziam os livros que eu tanto carregava comigo. Disse a ela que eram como novelas escritas, e lembro-me de ter me deparado com olhos instigados que, ainda assim, não puderam assimilar o sentido do que é algo “escrito”.
  
Quando pequena, minha primeira tentativa fora com “O Príncipe e o Mendigo”. Levei anos até chegar ao último ponto final. 
Mais tarde, meu segundo, dado por meu pai, um livro fininho de Pedro Bandeira com meu nome como título. E então, leituras das quais hoje me envergonho, porém cruciais. 
Evoco aqui a sensação de um mundo inteiro se abrir para mim. De repente, entendia tudo com mais clareza, enxergava mensagens onde antes só poderia ver o óbvio. Um universo inteiro sob meu mundo. 
Penso, agora eu com os olhos voltados a ela, em como seria bom que pessoas como minha avó pudessem sentir o que eu senti com meus primeiros livros. Sentir que são dignas de estarem aqui, sentir que estão no mesmo patamar de todos os outros, sentir a inclusão que ler nos traz. Sentir, afinal, o inocente orgulho de chegar ao último ponto final. 
Não apenas ler, mas entender e refletir. E não serem mais enganadas por desonestos afora, e por uma sociedade que não perde a deixa de tirar vantagem sobre alguém cuja instrução é pouca ou nula.
Há macetes para viver em um mundo cercado de palavras quando não se sabe interpretá-las, é claro. Mas minha avó nunca saberá o que é ler um livro. Um ato tão simples, porém tão grande a seus olhos. 
Sinto então que entre meu livro, eu, e minha avó ao lado, há uma distância imensurável que nunca será superada. Sinto-me longe dela, longe de sua pessoa que, mesmo analfabeta, carrega uma enorme sabedoria e grandes experiências consigo.

E mesmo que eu adore o livro em minhas mãos, desisto e pergunto a ela sobre seu tempo de moça, de sua vida na roça. Descubro uma inteligência, uma instrução, que grande parte do mundo não pode entender ou sequer enxergar. Pois, ainda assim, não há apenas a inteligência intelectual. Agora, também aprenderei com ela.

*        *        *

terça-feira, 29 de abril de 2014

MIGUEL TORGA - Vento que passas


Vento que passas 
Miguel Torga

Vento que passas, leva-me contigo.
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu possa dormir
Como no limbo dormem as crianças.

*      *      *

In:  Diário, vol. V, 1951

sábado, 26 de abril de 2014

DA TELMA

"Psyché ranimée par le baiser de l'amour", escultura de Antonio Canova

(Imagem via TelMont)

a tarde ensombreou quente e triste
só o rastro do teu perfume ainda me esperava
lancei-me de volta à acidez da cidade
menina perdida, sem qualquer saída
que me levasse ao teu olhar
preciso respirar-te para renascer a cada dia
mesmo que não estejas
mesmo que ainda mal sejas
arrisco-me à esperança, olhos cerrados, desejo: ouça-me 
e veja-me logo, a vida urge (cada vez mais difícil 
deixar-me proteger-te daquilo que eu quero). 

(TELMONT)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

ANIVERSÁRIO D'ELLA...



"Ella Fitzgerald is the essence of Jazz."  




Ella Jane Fitzgerald 
(Newport News, 25 de abril de 1917 — Beverly Hills, 15 de junho de 1996) 

Também conhecida como a "Primeira Dama da Canção"  First Lady of Song) e "Lady Ella", foi uma popular cantora de jazz estadunidense. 
Com uma extensão vocal que abrangia três oitavas, era notória pela pureza de sua tonalidade, sua dicção, fraseado e entonação impecáveis, bem como uma habilidade de improviso "semelhante a um instrumento de sopro", particularmente no scat.

Considerada uma das intérpretes supremas do chamado Great American Songbook, teve uma carreira que durou 59 anos.
(...)
Durante sua juventude Ella queria ser uma dançarina, embora gostasse de ouvir as gravações de jazz de Louis Armstrong, Bing Crosby e The Boswell Sisters. 
Idolatrava a cantora Connee Boswell, dizendo mais tarde: "Minha mãe trouxe para casa um de seus discos, e me apaixonei por ele....Tentei tanto soar exatamente como ela."
(...)
Fez sua estreia como cantora aos 17 anos, em 21 de novembro de 1934, no Teatro Apollo, no Harlem. 
Gradualmente conquistou um público semanal no Apollo, e a oportunidade de competir numa das primeiras "Amateur Nights" do teatro. 
Originalmente pretendia dançar, porém, intimidada pelas Edward Sisters, uma dupla local de dançarinas, optou por cantar no estilo de Connee Boswell. 
Interpretou "Judy", de Boswell, e "The Object of My Affection", das Boswell Sisters, e conquistou o prêmio principal, de 25 dólares.

Foi eleita em 2013 pelo site estadunidense Yahoo a maior vocalista da historia da musica mundial. 

(Fonte: wikipédia)

*           *            *



quinta-feira, 24 de abril de 2014

DRUMMOND - Confronto


Da página "Revista Bula"



Bateu Amor à porta da Loucura.
"Deixa-me entrar — pediu. Sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão."

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.

E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,

enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar."


*        *        *

Este soneto - "Confronto" - (inédito à época, 1979), um manuscrito autografado por Drummond e editado fotograficamente, constou de "Introdução Geral / As Várias Faces de Uma Poesia", na obra Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, Volume Único.





quinta-feira, 17 de abril de 2014

R.I.P. GABRIEL GARCIA MARQUEZ


Gabriel Garcia Marquez
Aracataca, Colômbia, 06 março 1927 - México, 17 abril 2014


Em "O amor nos tempos do cólera"

"Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados."

"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado."

"Não revelara o segredo de seu amor nem mesmo à única pessoa que conquistara o direito de sabê-lo. [...] não porque não quisesse abrir para ela o cofre onde o guardara tão bem ao longo de meia vida, mas porque só então percebeu que tinha perdido a chave."

"Tinha que ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era meio para nada, e sim origem e fim em si mesmo."

"...se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve pra nada."

 

*          *          *

quarta-feira, 16 de abril de 2014

ELIANE BRUM - Me chamem de velha


Me chamem de velha
Eliane Brum - Revista 'Época' - 20 de fevereiro 2012

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”. 
Pensei: “roubaram a velhice”. 
As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. 
Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. 
Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. 
E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.

Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. 
Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. 
Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. 
O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. 
É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também.
(...) 
Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. 

Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.  O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. 
Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. 
Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. 
Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. 
Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. 
Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.  

Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? 
Não. Eles são velhos.


Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos.  
Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. 
Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. 
Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. 
Acredito que velhos desejam as recreacionistas. 
Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.




Basta evocar a literatura para perceber a diferença. 
Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”?  Não. 
Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. 
Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: 
“Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.

Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.  O tal do “espírito jovem”. 
Envelhecer não é fácil. Longe disso. 
Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.
  
Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. 
Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. 
Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. 
Me apavoro bem menos. 
Não embarco em qualquer papinho mole. 
Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. 
Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. 
Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. 
Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. 
Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. 
Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. 
E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.

Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. 
Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”
Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. 
Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. 
Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. 
Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.

Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. 
Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. 
Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.




*          *          *

domingo, 13 de abril de 2014

FERNANDO PESSOA - Esta velha angústia (Álvaro de Campos)

Esta velha angústia
Álvaro de Campos

Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim, 
Transbordou da vasilha, 
Em lágrimas, em grandes imaginações, 
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, 
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. 

Transbordou. 
Mal sei como conduzir-me na vida 
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! 
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que..., 
Isto. 

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, 
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. 
Estou doido a frio, 
Estou lúcido e louco, 
Estou alheio a tudo e igual a todos: 
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura 
Porque não são sonhos. 
Estou assim... 

Pobre velha casa da minha infância perdida! 
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! 
Que é do teu menino? Está maluco. 
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? 
Está maluco. 
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! 
Por exemplo, por aquele manipanso 
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. 
Era feiíssimo, era grotesco, 
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. 
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — 
Júpiter, Jeová, a Humanidade — 
Qualquer serviria, 
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? 

Estala, coração de vidro pintado! 

*        *        *

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), in "Poemas" 

GRAÇA TAGUTI - Ninguém consegue viver de janelas fechadas


Ninguém consegue viver 
de janelas fechadas
Graça Taguti - "Revista Bula"

Imagine abrir sua janela ao acordar e, do mesmo modo que as lagartas magicamente se borboleteiam pelas paisagens da vida, encontrar uma fruta que se oferece a você.
Clama por seu gesto de sorvê-la inteira. Entregando assim sua gratidão a um dos tantos presentes que a natureza diariamente lhe dá, sem exigir nada em troca.

Saber receber é uma arte. Abrir os braços, o sorriso, o corpo e o coração e dispor-se aceitar quem estende o afeto a você.
Receber exige coragem. Integridade. Desejo. Iniciativa. Transparências do querer genuíno.
Quantas vezes ansiamos por algo ou por alguém, mas amortecemos as vontades, anulando-as até, enquanto trancamos nossas demandas nas gavetas da privação.

Por absurdo que pareça é mais fácil morrermos de fome. Agarrarmo-nos a uma soberba imbecil, estruturada na deplorável e ilusória onipotência de sermos autossuficientes. Autotróficos como as plantas, que extraem do solo a nutrição de que necessitam.

Mais fácil esbofetearmos os ventos da amorosidade que nos acariciam os sentimentos. Cuspirmos na possibilidade de promovermos sinergias junto a alguém.
Seja no trabalho, nos relacionamentos sociais, ou nos pares que pretendem abrir-se para os aconchegos da intimidade.

O medo de perder anuncia-se sob várias roupagens e disfarces – e é, além de costumeiro, renitente visitante da nossa existência. Enraizado nas couraças do espírito e aparentemente irrevogável.

Por que provarmos do mel, acendermos nossa gula se poderemos perdê-lo repentinamente? Melhor equivaler seu gosto ao do fel — recusando, então, o favo que nos provoca.

Você pode apossar-se da faca que reina afiadíssima em sua cozinha. Enterrá-la de vez no cérebro, sem qualquer anestesia. Expulsar do crânio sangrento e agonizante os neurônios que julga imprestáveis. Soldados do exílio voluntário. Apologistas das vantagens da solidão. Guardiões de silêncios nefastos, porque avessos às manifestações de carinho. Como, por exemplo, a dedicação às causas sociais deste mundo apodrecido que tanto nos constrange.

Coma a fruta, vai. Aceite a flor. Namore a borboleta que baila suas cores, bem diante dos seus olhos surpresos. Ela apresenta seu espetáculo, ondulando no ar da poesia, toda feliz e de graça.
Coma a fruta, vai. Aceite a ajuda de um parceiro de caminhada para chegar àquela cachoeira tão bela quanto escondida dos visitantes nas matas.
Prefere pêssegos, caquis, mangas — uma goiaba madura e vermelha?

Jogue o orgulho no lixo. Você mora só, jura ser independente por todos os poros, mas não consegue dar o nó na gravata. Subir o zíper do vestido. Matar a barata enorme e cascuda que o encara feroz no teto da sala.

A vergonha de pedir ajuda é tão estúpida quanto a sua recusa em declarar amor a quem o rodeia. Fraqueza solicitar auxílio. Disso você não duvida.
Outro gesto impensável é pedir perdão. Esta humilhação inadmissível não pode manchar seu currículo atitudinal.

E assim vamos sobrevivendo — ou melhor levitando, como autômatos neste planeta. Roubando romances jamais experimentados de páginas literárias já gastas. Angariando sonhados momentos, valendo-nos das muletas da imaginação que tingem de cores atraentes algumas cenas do filme a que resolveu assistir.

Quanta covardia. Esconder a premência do amor atrás das portas do cotidiano. Esmagar a linda borboleta com suas mãos cegas e insanas. Arrancar do galho a fruta mais desejada e atirá-la ao chão, triunfante, num arremedo de falido desdém.

Nem sempre percebemos o inverno que nos invade. Tiritamos de frio, porém permanecemos inconscientes.
Expomo-nos a pneumonias na alma.
Vestidos de acintosa nudez, trocamos nossos braços de abraçar pelo repúdio dos galhos secos e mortos.

Felizmente a vida se revela em ondas, ciclos, luzes distintas. Nada permanece igual. Nem mesmo a maldade, a tristeza ou a insensibilidade. Nem mesmo o medo agarrado a você como uma criança pequena e indefesa.

Pode ser que as janelas agora estejam fechadas. Mas estamos sujeitos a descuidos, distrações ou aos ímpetos de ventanias.
É neste instante que as frutas se oferecem novamente. E mais uma vez você tem a chance de colhê-las.



*            *            *


sexta-feira, 11 de abril de 2014

DRUMMOND - Mãos dadas

Mãos dadas
Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro. 
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. 
Entre eles, considero a enorme realidade. 
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. 

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, 
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. 
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, 
a vida presente.

*            *            *

In: "Sentimento do mundo"





quinta-feira, 10 de abril de 2014

O SERTÃO VAI VIRAR MUNDO - Marco Antonio Cruz

Da página "Obvious"  em 08 de abril 2014

grandesertao.jpg
O sertão vai virar mundo
Marco Antonio Cruz

Quando “Grande Sertão: Veredas” foi publicado em 1956, não demorou para que a crítica o aclamasse como a grande obra que é. 
Sua narrativa e estilo único fizeram do livro um dos romances mais importantes da literatura brasileira, talvez de toda a língua portuguesa. 

Seguindo a influência modernista, seu texto imprime uma marca inventiva tanto em forma como enredo. 
A personagem Riobaldo narra os fantásticos episódios de sua vida a um interlocutor sem nome, um doutor da cidade de passagem pelos “Gerais”.
As histórias de amor e guerra, deus e diabo, vão se derramando com a imprecisão e falta de linearidade típicas de quem rememora, num monólogo de 500 páginas que mantêm a fluidez e musicalidade a cada linha.

O texto escrito guarda muito da expressão oral do relato. 
Permeado por particularidades linguísticas da região sertaneja, o regionalismo da fala de Riobaldo colore a narrativa. 
Neologismos de toda sorte (conhecenças e duvidações desenormes!) e também arcaísmos que resgatam o que há de mais antigo no português medieval, fazem da obra um tesouro do idioma.

A sintaxe singular do livro, suas construções frasais entre poesia e prosa, quase filosóficas, levaram muitos críticos a dizer que Guimarães Rosa havia inventado uma nova língua. 
O choque do leitor, não deve ser muito diferente do que o doutor da cidade experimenta ao ouvir o relato de Riobaldo, e faz parte da atmosfera do livro. 
É um conflito de dialetos, suas influências geográficas e temporais. Tendo a compartilhar a opinião do poeta Manuel Bandeira, que em carta ao amigo escreve:

“Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques. 
Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. 
Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! 
A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. (…) Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: ‘ciriri dos grilos’, ‘gugo da juriti’ etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é ‘arga’, ‘suscenso’, ‘lugugem’ e um desadôro de outras vozes dos gerais. 
Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será? 
Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta.”

Lemos Guimarães Rosa em português como quem aprende uma língua estrangeira, prestando atenção aos sons e ao que se diz no subtexto. 
É a redescoberta da língua-mãe. 
Guimarães Rosa era um alquimista da língua. 
Além de falar o português e as principais línguas europeias, como o alemão, inglês, francês, também lia italiano, o servo-croata, sueco e russo, além de estudar por prazer a gramática de diversas outras línguas como o persa, chinês, japonês, hindi, húngaro, malaio.

Em carta a João Condé, 1946, escreve que “cada língua guarda em si uma verdade interior que não pode ser traduzida.” 
Este esclarecimento possibilitou a Guimarães Rosa escrever o livro intraduzível. 
É verdade que Grande Sertão: Veredas possui inúmeras traduções, algumas delas acompanhadas de perto e aprovadas pelo autor, mas sempre incompletas e decididamente pobres perto do original.

A pior delas talvez seja a versão em língua inglesa “The devil pay in the backlands” de 1963. 
É difícil transportar os malabarismos sintáticos do livro para o inglês, idioma mais enxuto. Excessivamente acadêmica e literal o fracasso desta versão foi tão contundente que não houve outra tradução desde então. 
Sem novas edições, mesmo seus sofríveis exemplares são caros e raros. 
Guimarães Rosa permanece, até hoje, na penumbra para os leitores de língua inglesa. 

Porém, novas tentativas de tradução tem sido articuladas pelos herdeiros do escritor. 
Após muitos escritores anglófonos alegarem falta de tempo ou mesmo capacidade para transportar o romance para o idioma, desde 2013 uma nova tradução está em curso. Até ela ficar pronta, esforços anônimos como o do pesquisador Felipe Wood Martinez, geram iniciativas como a tradução do romance feita pelo Twitter, 140 caracteres por vez, acessível pelo perfil (@___VIATOR___).

Mas o que perdem os gringos ao deixar de ler uma história escrita em português intraduzível sobre o idiossincrático interior do Brasil?

A grande virada de Guimarães Rosa é que o escritor desvendou, entre os regionalismos intrincados de sua obra, algo de universal e cosmopolita no sertão brasileiro. 
Muito além de digressões literárias, os “desvarios” de Riobaldo no sertão são o centro da trama. Suas reflexões existencialistas sobre o sentido da vida e o fatalismo da morte, a existência ambivalente de deus e do diabo, as muitas faces do amor e as veredas do mundo, são as mesmas de todos os homens, de qualquer parte. 
O sertão, de cenário, torna-se aos poucos o personagem principal, o mundo. E o mundo é um só para todos. 

“O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.”

“O sertão é do tamanho do mundo.” 

“Sertão é dentro da gente.” 

“O sertão é sem lugar.”

“O sertão está em toda parte.”

“O sertão é uma espera enorme.”  

“O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”

É por isto que este sertão mundo é acessível de qualquer lugar. 



Guimarães Rosa escreveu seu grande sertão na metrópole parisiense, rememorando, à maneira de Riobaldo. 
Dizia à filha: “O sertão, Vilminha, é metafísico. Eu galopo nele as minhas histórias.” 
E neste sentido escreveu que “Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac… porque o Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem mais estar separados.”

Com um romance regional, porém universal. Universal, porém intraduzível. Intraduzível, mas ainda cosmopolita — Guimarães Rosa revelou que o sertão vai virar mundo, basta que o mundo saiba traduzir-se e virar sertão. 
Mas para nós, seus companheiros de língua, deixou a porta aberta:

“…o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. (…) Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas.”


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sábado, 5 de abril de 2014

De A.HUXLEY para G.ORWELL

Da página "Homo Literatus" -  por Luísa G. Ferreira em 05 de abril 2014

Neste mesmo marcador - Curiosidades - há breves referências a esses dois autores na postagem 'Vivendo e aprendendo com os livros'.


Aldous Huxley
George Orwell

As distopias mais populares do século 20 foram escritas por George Orwell e Aldous Huxley. As obras 'Admirável Mundo Novo' e '1984' representam indignação em relação à política autoritária da época; ambos advertiram sobre um possível futuro onde pessoas são manipuladas, não têm privacidade e vivem de acordo com o que é imposto pelo seu Estado.
A crítica às normas criadas pelo bem comum contracenam lado a lado com a corrupção do governo.

Huxley recebeu uma cópia da obra 1984, escrita por Orwell,  no início de sua publicação, mas por problemas de visão, sua leitura foi estendida. 
Na carta ele aponta a necessidade de um governo mais eficiente e a possibilidade de uma futura guerra em larga escala com fontes biológicas e atômicas.

Confira a opinião de Aldous Huxley sobre '1984' em sua carta escrita em outubro de 1949:

"Caro Sr. Orwell,

Foi muito gentil da sua parte solicitar a seus editores que me enviassem uma cópia de sua obra. 
Ela foi entregue conforme solicitado enquanto eu estava no meio de um trabalho que requeria muita leitura e constantes consultas de referências de minha parte; e devido à minha visão prejudicada, vejo-me na necessidade de racionar meus momentos de leitura. 
Foi necessário aguardar um longo período para que eu pudesse embarcar em '1984'.

Concordando com o que todos os críticos expressaram até o momento, eu não preciso dizer, mais uma vez, o quão excelente e profundamente importante esse livro é. 
Permita-me então, falar a respeito do assunto que permeia sua obra – a última grande revolução? 
As primeiras dicas de uma filosofia da última grande revolução – a revolução que vai além do político e do econômico, e que busca a total subversão da psicologia e fisiologia individual – podem ser encontradas nas obras do Marquês de Sade, que se via como um continuador, um consumador, de Robespierre e Babeuf. 
A filosofia da dominação da minoria em 1984 é de um sadismo que se carrega além de sua conclusão lógica indo além do sexo e, inclusive, o negando. Porém, uma política de botas-na-cara da população se manter indefinidamente parece duvidável. 
Minha crença pessoal é de que um governo oligarquista irá encontrar maneiras mais fáceis e de menos gastos de continuar no poder e satisfazer sua sede de poder, e que essas maneiras irão se parecer mais como as que descrevi em 'Admirável Mundo Novo'. 
Ocasionalmente e recentemente, me encontro pesquisando a respeito do magnetísmo e hipnotismo animal, e, em mais de uma ocasião, me encontro surpreso por, em mais de cento e cinquenta anos, o mundo se recusar a reconhecer a seriedade das descobertas feitas por Mesner, Braid, Esdaille e tantos outros.

Em parte devido ao materialismo predominante e em parte devido ao crescente respeito pelos direitos humanos, os filósofos e homens da ciência do século dezenove não estão inclinados a investigar os estranhos fatos da psicologia para homens como políticos, soldados e policiais e aplicá-los no campo do governo. 
Graças à ignorância involuntária de nossos país, os adventos da última grande revolução foram atrasados por mais cinco ou seis gerações. 
Outro incidente de sorte foi a inabilidade de Freud a hipnotizar pacientes com sucesso e sua subsequente desistência da prática. Isso atrasou a aplicação do hipnotismo em terapias por mais alguns quarenta anos. 
Mas agora, psico-análises estão sendo combinadas novamente com hipnotismo; e a hipnose agora foi facilitada através do uso de substâncias que induzem o estado hipnótico e sugestivo aos mais tolerantes pacientes.

Dentro das próximas gerações, acredito que os governantes mundiais irão descobrir que condicionamento infantil e narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de opressão, do que prisões e centros de tratamento, e que essa busca por poder pode ser satisfeita ao sugestionar a população a amar sua servitude ao invés de espancá-las e chutá-las à obediência. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo que se assemelha ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo. 
Essa mudança irá ocorrer pela necessidade do governo de um modelo mais eficiente. 
Ao mesmo tempo, é claro, é possível a existência de uma guerra em larga escala de frentes biológicas e atômicas – que no caso, nos tragam pesadelos de outros e ainda não imaginados tipos.

Agradeço novamente pelo livro.

Sinceramente, Aldous Huxley.”