sábado, 29 de dezembro de 2018

Sobre o filme 'Bird Box' - página 'CONTI outra'


"Bird Box":  - Psicóloga desvenda mensagens 
subliminares do filme
Gabriela Souza Granero (*) - Página 'CONTI outra'



Protagonizado por Sandra Bullock, o filme “Bird Box”, estreou na Netflix já fazendo barulho e dividindo opiniões. Há os que não se agradaram, os que gostaram muito e, como sempre, os que inevitavelmente comparam com o livro, já que “Bird Box” foi baseado no livro de mesmo nome de Josh Malerman – publicado no Brasil pela Editora Intrínseca com o título “Caixa de Pássaros”.

O filme mostra a história de pessoas que são obrigadas a viver escondidas e vendadas, pois criaturas misteriosas e não visíveis para quem assiste, provocam o suicídio em quem enxergá-las. O maior desafio da personagem de Sandra Bullock é levar seus dois filhos para um abrigo em segurança, mas todo o trajeto deve ser feito com venda nos olhos.

Segundo algumas interpretações (muito bem elaboradas, diga-se de passagem), a diretora dinamarquesa Susanne Bier usa o tema do “pós apocalíptico” apenas como metáfora para passar outra mensagem: a questão da depressão que afeta mais e mais pessoas em todo o mundo a cada dia.

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Aqui apresentamos uma análise elaborada pela psicóloga Gabriela Granero. Vale muito a pena a leitura.

No início do filme, a personagem principal tem dificuldade de se vincular e mostra uma incapacidade de amar; pinta no quadro a solidão instaurada dentro de si, o que evidencia seus sintomas depressivos e uma latente infelicidade.
Correlacionado ao período que vivemos na qual depressão é a doença do nosso século.

Depois o filme mostra que a “coisa” está se espalhando por todos países e ninguém está imune, a não ser aqueles que não olham, a “coisa” que se espalha.  Faz uma analogia com a sociedade contemporânea, a qual está adoecida, e todos estão se contaminando só de olhar uns para os outros.

Esse adoecimento contemporâneo pode ser visto na enorme quantidade de pessoas com transtornos mentais (depressão, pânico, toc, TAG), além do isolamento social, a invasão tecnológica, o excesso de consumismo, etc.

O pânico é muito bem representado no filme em diversas cenas, mas talvez a mais visível seja quando estão indo ao supermercado e o personagem negro se desespera.

Também podemos relacionar com a onda de suicídios coletivos ocorridos nesse últimos ano, em pessoas de todas as faixas etárias.

Para não se “contaminar” os personagens fecham os olhos; às vezes precisamos fechar os olhos frente aos disparadores que causam adoecimento na contemporaneidade para que possamos sobreviver, porém mais do que fechar os olhos é preciso descobrir uma nova forma de viver.
Reinventar-se , entretanto. demanda um árduo trabalho, as vendas nos olhos fazem alusão a:
'Ah, como é difícil  acostumar-se a viver de uma outra maneira.'

A travessia do rio no filme , representa as travessia diária que temos que fazer para não nos contaminarmos/adoecermos, porém essa travessia não é um caminho fácil mas composto de correntezas.
Além do que, muitas vezes, é preciso fazer difíceis escolhas, como no momento que a personagem tem que escolher entre o garoto e a garota.

Quantas vezes na nossa vida não nos vemos em um beco sem saída? Sem saber qual decisão tomar?

Outro ponto são os “loucos” do filme, que fazem alusão aos transtornos mentais inerentes em todos ser humano, dos quais ninguém está imune.

As cenas de suicídio e pânico são chocantes e metaforicamente representam a fragilidade humana, o desespero muito bem retratado no filme, o desespero interno que estamos vivenciando.

Outro ponto que não pode ser esquecido, é com relação aos pássaros, sensíveis a captar quando a “coisa” está chegando.
Quantas vezes sentimos uma “coisa” que não sabemos nomear. Às vezes não somos capazes de reconhecer nossos próprios sentimentos.

Em uma determinada parte do filme, o personagem Tom diz que teve um sonho na qual os pássaros estavam em um ninho em cima da árvore,  depois voaram e foram embora

Essa metáfora representa a liberdade emocional e social que todo ser humano almeja, mas que é muito difícil encontrar. Somos como pássaros presos em gaiolas. 
As gaiolas representam a escravidão evidenciada no filme, as vendas fazem analogia ao fato de que não estamos vendo a gravidade da nossa situação; com o pânico instaurado a única saída possível é o suicídio. Será que não estamos engaiolados?
Será que não ouvimos vozes que nos querem convencer do contrário? Como a cena em que estão na floresta, a atriz principal e as crianças ouvem vozes que as confundem.
Quantas vozes nos atrapalham em nosso crescimento emocional?

Por fim, quando a personagem faz a travessia do rio, desenvolve a sua capacidade de amar, Tom não vai com ela, pois essa travessia é única, muitas vezes temos que fazê-la sozinhos.

O final do filme é o mais surpreendente: os únicos que não foram contaminados são os cegos, outra metáfora muito forte.

Eles não vêem fisicamente, mas têm a habilidade de olhar internamente para si, por isso não são “contaminados pela coisa”.

Ao final, a personagem principal aprende a amar e a lidar com seus sintomas depressivos, a capacidade de amar a salva de sua solidão e dá sentido a sua vida.

Ao dar um nome ao garoto e à garota, fica nítido que ela perdeu o medo de se vincular. E perdeu o medo de perder as pessoas, já que  perdera sua irmã, sua amiga grávida e outros amigos.

Chegar à comunidade é alcançar a liberdade, representada ao soltar os pássaros da gaiolas; chegar à comunidade é desejo de alcançar a “cura” e, mais do que isso, fugir desse adoecimento contemporâneo.

Nessa comunidade as pessoas estão convivendo umas com as outras e as crianças estão brincando, e detalhe: as crianças não estão no celular.
Porém, ainda assim, os personagens não alcançam a liberdade em sua completude, pois estão presos em uma “gaiola de pessoas”.

Será possível alcançar a felicidade em sua plenitude?

O conceito de saúde mental, de acordo com a OMS, é “o completo bem estar físico, mental e social.”
Será possível alcançar essa completude? O sofrimento não é inerente a nossa condição?

Enfim, o filme está cheio de mensagens subliminares mas às vezes estamos com os olhos vendados e não conseguimos ver.
*            *            *

(*) Gabriela Souza Granero é psicóloga,
pós-graduada em psicoterapia psicanálitica pelo Uni-Facef
Mestranda em Psicologia pela UFTM

sábado, 8 de dezembro de 2018

O Requerimento - Adriana Falcão

O REQUERIMENTO
Adriana Falcão - nascida em 12 de fevereiro de 1960. 
É escritora e também roteirista de TV.

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Caro Senhor Tempo,
Espero que esta o encontre passando bem, ou melhor, passando o mais devagar possível.
Por aqui vai-se indo, como o Senhor quer e consente, meio rápido demais para o meu gosto, e quando vi já era dezembro.
Foi-se mais um ano.
E com ele foram-se uma quantidade incalculável de amores, cores, idades, alguns amigos, não sei quantos neurônios, memórias, remorsos, desvarios, cabelos, ilusões, alegrias, tristezas, várias certezas (se não me engano, treze), algumas verdades indiscutíveis, umas calças que não fecham mais e aquele vestido de que eu gostava tanto.
Foi-se o meu gosto por vitrine.
Foi-se quase todo o meu vidro de perfume.
Foi-se meu costume de imaginar asneiras à noite.
Foi-se meu forte instinto de acreditar no que me dizem.
Foi-se meu açucareiro de porcelana.
Que pena.
Foi-se o tempo em que uma simples farra não significava necessariamente uma condenação sumária no dia subseqüente.
Foi-se a poupança.
O troquinho da gaveta.
Foi-se aquele antigo projeto.
Foram-se exatamente nove vírgula seis por cento de todas as minhas esperanças.
Será que o Senhor não se cansa, seu Tempo?
Não pensa em tirar umas férias, dar uma pausa, respirar um pouco? Não lhe agrada a ideia de mudar o andamento? Diminuir o ritmo? 
Em vez de tic-tac, inventar uma palavra mais comprida para compasso, mantra, ícone, diagrama?
Me diga sinceramente: para que tanta pressa?
Anda difícil acompanhar seus passos ultimamente.
Não precisa dar meia-volta, eu não espero tanto. Eternidade? Não. Só queria sua amizade.
Mas já é dezembro.
Foi-se mais um ano.
E o Senhor passou voando, rebocou os meus momentos, foi desbotando minhas lembranças, carregou mais doze meses inteiros levando cada instante meu de carona.
Tentei voltar atrás em algumas decisões. Já era tarde.
Não deixei nada para amanhã. Mesmo assim não fiz sequer metade do que pretendia. Imaginei várias maneiras de estancar os dias, segunda, terça, quarta, quando via já era quinta. Sexta. Sábado. Domingo. Pronto.
Pensei em fuga. Será que existe algum lugar deste mundo onde as horas não me encontrem? Fiquei meses trancada em casa. Foi inútil. Lá fora, o Senhor continua passando.
E já passou mais um pouquinho.
Calma, Tempo! Espere só um minutinho para eu explicar melhor meu ponto de vista.
Nem todo mundo é pedra, concorda? Dito isso, imagine então quantos pobres mortais sofrem da mesma agonia diária: giros e mais giros nos ponteiros, os cantos dos cucos, as denúncias das sombras, os grãos de areia escorrendo (parece até hemorragia crônica), tudo escapulindo, descendo, subindo, o frenesi dos dígitos, um, dois, três, quatro, cinco, cem, o Senhor vai tirar o pai da forca? Está fugindo de alguém? De quem? De mim? De ontem?
Eu conheço de cor suas obrigações.
Estou convencida de suas utilidades.
Não fosse o Senhor, não existiriam saudade, retrato, suvenir, antiguidade, história, época, período, calendário, outrora, passatempo, novidade, creme anti-rugas, disputa por pênaltis, antepassado, descendente, dia, noite, nada, não existiria sabedoria, eu sei disso.
Não tome como queixas minhas palavras, por favor não tome.
Aqui vai apenas uma súplica.
Ah, se o Senhor fosse mais indulgente, mais piedoso, mais pensativo, se fosse baiano, menos estressado, mais manso, menos rigoroso, um 'bon vivant', e se distraísse aí pelo caminho, e se deixasse apreciar as paisagens, e sofresse um devaneio, e ficasse de bobeira, esquecido das horas, divagando.
Escute aqui, seu Tempo, que tal deixar passar o resto e parar quieto um pouco?"

*            *            *

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sobre 'Macunaíma',de Mário de Andrade

"Muito mais do que um livro de vestibular"
Edison Veiga
De Milão para a BBC News Brasil 
Fonte: Jornal UOL – 15 de setembro 2018

Grande Otello no filme Macunaíma
Adaptada para o cinema, em filme considerado por críticos
um dos cem melhores da filmografia nacional

"Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" - esse slogan de Macunaíma pode ajudar a explicar metaforicamente o país até hoje, na opinião de muitos. 
Mas não é só isso que faz a grandeza dessa obra-prima, o romance rapsódia 'Macunaíma - O herói sem nenhum caráter', que o modernista Mário de Andrade (1893-1945) publicou em 1928, há 90 anos.

O escritor criou um anti-herói marginal que nasce com preguiça na Amazônia e apronta tantas traquinagens que acaba abandonado pela mãe. 
Macunaíma é erotizado e, a todo custo, busca prazeres sexuais. Ainda na floresta, ele ganha um talismã indígena, a muiraquitã. Depois perde a pedra e então viaja para São Paulo e Rio de Janeiro a fim de tentar recuperá-la. No percurso, o protagonista - que nasce negro e vira branco - vive peripécias e confusões, revelando suas falhas de caráter.

"O livro reúne uma vasta pesquisa da linguagem, das práticas narrativas e das músicas, das falas, ditos, contos e cantos populares do Brasil", enumera o antropólogo Paulo Santilli, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
(...)
"Com muita pesquisa, argúcia e inventividade, Mário introduziu linguagens populares nos centros urbanos e os ambientou, amalgamados, em uma inventiva criação, tecendo uma crítica, de modo tão irreverente quanto irônico, aos cacoetes das elites."
(...)
Uma obra 'deslumbrante e triste, como o Brasil'

A primeira edição, com 283 páginas, foi impressa nas Oficinas Gráficas de Eugenio Cupolo, em São Paulo. Saiu do prelo em 26 de julho de 1928 e, nos meses seguintes, foi assunto entre os principais expoentes da cultura nacional. "A obra apresentou uma grande renovação estética. E isso provocou uma reação irada da crítica conservadora", diz Santilli.
Capa da primeira edição de Macunaíma, de 1928, hoje em domínio público
"É um marco do modernismo, o primeiro movimento literário realmente brasileiro e, dessa forma, ele dá resposta ao anseio do brasileiro entender quem somos, afinal, como povo. Essa é uma questão eterna para um país que surge do encontro - ou desencontro - de centenas de etnias indígenas e africanas, por causa da colonização europeia. Um país que é miscigenado, que se ama e se odeia por isso", comenta a antropóloga Deborah Goldemberg, curadora de um evento promovido pela organização social Poiesis para celebrar os 90 anos do livro.

"Desde que foi lançado, o livro significou isso - um marco na literatura brasileira, algo genuinamente brasileiro, com estética e linguagem próprias e não comparáveis ao cânone europeu que influenciava a literatura brasileira até então. Sempre encantou porque ele é ao mesmo tempo deslumbrante e triste, como o nosso país."
(...)
Macunaíma já foi pintado, aliás, por uma gigante da história das artes plásticas do Brasil. É de Tarsila do Amaral (1886-1973) o quadro O batizado de Macunaíma, que hoje pertence a uma coleção particular.
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Em 1969, Macunaíma virou filme - dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e com Grande Otelo (1915-1993) no papel principal. A obra é considerada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como uma das cem melhores da filmografia nacional.

Filme Macunaíma
Para especialistas em literatura e sociólogos, Macunaíma é uma obra que convida a refletir sobre a identidade nacional.

Gestação longa, nascimento rápido
Mário de Andrade costumava dizer que escreveu Macunaíma em apenas seis dias - "deitado na rede em Araraquara", frisa o poeta e crítico literário Frederico Barbosa. "No entanto, a obra revela uma enorme pesquisa e profunda reflexão do escritor sobre a identidade nacional. Ou seja, demorou muito tempo para ser gestada, embora tenha saído de forma bastante natural ao ser escrita."
Barbosa acredita que é isso que faz de Macunaíma um livro "sempre interessante e vivo".

"É erudição com naturalidade e humor. É muito sério em sua essência, mas muito engraçado e divertido na leitura. Em outras palavras, Macunaíma é, antes de tudo, uma obra gostosa de se ler que abre um vasto leque de reflexões sobre nossa identidade nacional", explica.

"Segue sendo importante porque diz muito do Brasil do início deste século e também do século passado", afirma Santilli.

"A maestria de Mário de Andrade ao mesclar a língua coloquial e a escrita demonstra a distância entre esses falares e confere um efeito estético. Essa trama ilustra a distância tanto no léxico quanto na política entre as elites e a população. Significa muito mais do que as listas de vestibulares. É um livro necessário para compreender o Brasil, a riqueza e a diversidade linguística e cultural do Brasil, e ao mesmo tempo a mediocridade e a avidez mesquinha da elite que marca a história do Brasil."

"Noventa anos depois, continuamos buscando uma identidade cultural nacional, algo que nos una enquanto nação. Mas continuamos divididos e sem conhecer nossa história - o que pode ajudar a entender todas as tensões atuais", comenta o editor e poeta Eduardo Lacerda.
*

Poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, historiador da arte, folclorista e ensaísta, ele gostava de ir a campo em busca das experiências dos brasileiros reais. Foi uma das mentes por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, que deu início ao movimento Modernista e mudou a arte no país.

Em 1935, tornou-se diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo, um órgão que seria o embrião da atual Secretaria de Cultura. Em 1937, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi criado, Mário de Andrade foi incumbido de peregrinar pelo interior paulista a fim de identificar e mapear tudo aquilo que merecia ser protegido como bem cultural no Estado.

Nessas viagens, ele acabou se tornando o primeiro a olhar com interesse histórico para as hoje reconhecidas "casas bandeiristas", construções coloniais paulistas pobres e rudimentares, de estruturas simples e feitas de taipa de pilão. "Casas velhas", era como o poeta as chamava - sem que isso fosse algum demérito, muito pelo contrário.

*               *               *

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Sem título - Adriano Dias

Venho falando demais,
Estúpido
Ao que deveria ouvir,
Sufocado em meus ouvidos
Por minha própria voz,
Verbanalizando sempre o mesmo:
.
- o eu! ; o mundo!; as coisas!
[tudo em terceira pessoa]
.
Deveria calar um pouco
E saber da brisa e seu frio substantivo,
Do mundo e seus ruídos,
Do tudo aí, sensível,
E do vazio
Aqui
Comigo.
.
Daí entenderia:
Talvez a fração que me falta
[esse vácuo que tanto cavo],
Talvez nada demais,
Só o vento, o som, os olhos
Com seu não significar nada,

Só menos alheio a mim mesmo.
**

Adriano Dias - Página 'Semema'


Mural do árabe Shahul Kollengode @shahulart

A João Guimarães Rosa - Maureen Bisilliat

Da página "Prosa, Verso e Arte"

Fotógrafa inglesa MAUREEN BISILLIAT homenageia Guimarães Rosa

A JOÃO GUIMARÃES ROSA
– Maureen Bisilliat (IMS – Séries | 24.9.2013)


Voltas no tempo ‘A João Guimarães Rosa’

Tudo começou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de 'Grande sertão: Veredas', de Guimarães Rosa – não sem a observação de que talvez não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. 
Não só compreendi como mergulhei nas águas daquele mar de palavras – o sertão não viraria mar? -, inspirada e instigada a investigar a relação direta de Rosa com os gerais de Minas Gerais. 
Assim, durante os anos 60 viajei por essas terras seguindo um roteiro sugerido pelo autor, iniciando pelas raízes – Curvelo, Cordisburgo, Andrequicé -, subindo pelo tronco da árvore, expandindo pelos galhos, até chegar em Januária, no norte de Minas. Desloquei-me para lá e, ao voltar de cada viagem, ia visitar o escritor, então chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty. Levava, a cada encontro, um calhamaço de fotografias captadas nas terras do autor de Sagarana e, atrás de cada uma, ele anotava detalhes – nome, idade, solteiro, casado ou viúvo, lugar de encontro, como e quando etc. -, recebendo através das imagens mensagens dos gerais. 
No final de nossas reuniões, ele sempre me acompanhava até o elevador e me desejava uma boa próxima viagem, dizendo estar certo de que eu, como irlandesa, iria compreender os eflúvios poéticos dos gerais, devido à semelhança entre aquela região e a Irlanda (“Irlandesa Cigana” foi, aliás, como ele me apelidou, teria ele entrevisto alguma ancestralidade cigana nos meus cabelos longos, roupas amplas, sandálias no pé?).

Anos depois desses nossos encontros, fui visitar sua viúva, Dona Aracy, no prédio onde eles tinham morado em Copacabana, Posto 6. 
Lá, ela me levou até uma pequena sala, entre os rochedos e o mar, e contou que fora ali que Rosa escrevera seu Grande sertão. “Noite após noite”, confidenciou-me, “eu levava para ele duas ou três trocas de pijama, pois enquanto escrevia transpirava muito, banhando-se em suor. Ele me dizia que recebia a obra assoprada, sendo ele apenas receptor”.
**

Andrequicé, 1966
Porta de entrada para os gerais de Guimarães, companheiro de viagem de Manuelzão – Manuel Nardi, vaqueiro-mor, personagem central de uma das novelas de 'Corpo de Baile': 

Comecei a conhecer os sertões por suas veredas. Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. 
Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: “A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!” Sim, o próprio Manuel Nardi, inspirador do conto “Manuelzão e Miguilim”, publicado em 1956, como parte do livro 'Corpo de baile': um bom augúrio para a busca planejada!

Indaguei acerca de um lugar para pernoitar e o moço do boteco me levou à casa de uma velha senhora que me recebeu com a acolhida espontânea e ampla dos que pouco têm, mas muito oferecem: ovo frito, saborosa farofa e um café mineiro, doce, perfumado e ralo, daqueles que descem como água benta apaziguando a sede!

Dormi com a candeia acesa, a esteira no chão. Acordei cedo, o sol despontando no horizonte, no friozinho da madrugada. E lá estava ele, Manuelzão, sombra esguia na parede caiada, chapéu de abas firmes, capa de feltro azul, rosto de couro curtido, olhar de águia me aguardando sem prosa, pronto para o retrato que viria a ser – para mim e para muitos – emblemático da estirpe rija dos gerais de Guimarães. 
De repente, me olhando a esmo, deparei com a figura de um homem – um vaqueiro, talvez? Pedi licença para tirar o seu retrato. Sisudo e cismado, ele não quis me atender. Satisfeita com a sorte, feliz da vida, com Manuelzão na máquina, passei o dia fotografando boiadas na poeira do campo. No fim do dia, de volta para Andrequicé, avistei a figura do homem, lá me esperando, calmo e quieto, no aguardo de seu retrato: era isso que ele queria ter. 
Acontece que de manhã, quando me viu pela primeira vez, ficou com medo. Por ser cigano achou que eu era da polícia e estava lá para prendê-lo. Era isso, então. Como os romas da França de Sarkozy, os ciganos dos gerais também são malvistos, estigmatizados como gatunos e ladrões de cavalos, vítimas de velhos preconceitos encravados na contramão da história, levando a guerras e desentendimentos entre nações.

*            *            *


Saudade - Rachel de Queiroz

Saudade 
Rachel de Queiroz  - Revista 'O Cruzeiro' em 04 de julho 1953



Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. 
Saudades de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro. Nem mesmo de quem morreu. 
De quem morreu sinto é a falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim a presença atual. Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles. 

A vida é uma coisa que tem que passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. 
Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude. Meu Deus, acha- me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais? 
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir. 
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade, mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais. Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? 
Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e por isso mesmo dos grandes heroísmos. 
É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo, e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que uma grama; e por essas medidas pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas. 
Nem sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. 
Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade madura a que chegamos você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos. 
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Aí, um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído. E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos. Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. 
Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou. 

 Não, meu bem, não tenho saudades. Nem sequer do primeiro dia em que nos vimos, daqueles primeiros e atormentados dias de insegurança e deslumbramento. 
Considero uma benção e um privilégio esse passado que ficou para atrás de nós, vencido. Afinal, já andamos bastante caminho, temos direito ao sossego, a esta desambição, esta paz. Vivemos, não foi? Fizemos muito. E nem por isso deixamos de ainda ter muito o que fazer. 
A velhice que vai chegar com as suas doenças e trabalhos. E ainda virá a grande crise da morte em que um de nós, necessariamente, terá que ajudar o outro. Espero que aquele que ficar só, embora triste, se sinta tranquilo, na segurança de que a sua vez não tarda. Que aí, só lhe resta a pagar a última prestação.
*               *               *

sábado, 8 de setembro de 2018

'DIES IRAE' - Clarice Lispector


'DIES IRAE'
Clarice Lispector - no livro "A Descoberta do Mundo'

"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. 
E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos semiparalíticos. 
E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. 
E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? 
E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? 
Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.

E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. 
E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me deixam em cólera. 
E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. 
E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.

Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer. 
– Acabo de ser interrompida pelo telefonema de uma moça chamada Teresa que ficou muito contente de eu me lembrar dela. Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu no hospital, durante os quase três meses onde passei para me salvar do incêndio. 
Ela se sentara, ficara um pouco calada, falara um pouco. Depois fora embora. 
E agora me telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônicas ou coisa parecida. Que ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como sou no jornal mesmo. 
Eu disse que sim, em parte porque também gostaria que fosse sim, em parte para mostrar a Teresa, que não me parece semiparalítica, que ainda se pode dizer sim.

Sim, meu Deus. Que se possa dizer sim. No entanto neste mesmo momento alguma coisa estranha aconteceu. Estou escrevendo de manhã e o tempo de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes. 
E outro telefonema veio: de uma amiga perguntando-me espantada se aqui também tinha escurecido. Sim, aqui é noite escura às dez horas da manhã. É a ira de Deus. 
E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um mundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como viver. 
Porque se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra, que era a solução. 
Por que deixar entrar na arca um par de cada espécie? Pelo menos o par humano não tem dado senão filhos, mas não a outra vida, aquela que, não existindo, me fez amanhecer em cólera.

Teresa, quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e imobilizada. Hoje você me veria mais imobilizada ainda. Hoje sou a paralítica e a muda. E se tento falar, sai um rugido de tristeza. Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também.

*            *            * 

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

"“Ora (direis) ouvir estrelas!”


"E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

(Olavo Bilac)

"Starry, starry night"

* Postagem no facebook: 
Cañadas Fernando
2 h · 


Há mais ou menos uma semana, fui fazer Helena dormir e ela, com os olhos quase fechados, me disse assim, com a voz já lenta pelo sono:

- Papai, você me acorda no meio da noite e me mostra as estrelas? É que eu nunca vi as estrelas...

O pedido foi tão surpreendente e ao mesmo tempo tão simples e direto, que fiquei sem reação. Na hora eu disse sim, claro que acordaria, mas caí no sono e desde então estou devendo as estrelas a ela.

De lá para cá fiquei pensando no melhor local e forma de fazer isso.

E só consegui pensar em dificuldades.

São Paulo no inverno é um péssimo local para se ver estrelas. Além da poluição, o céu está sempre coberto por nuvens e muito dificilmente se vê algo.

O horário também é complicado. Helena dorme cedo, antes das nove horas. Chega da escola depois das seis. Aí vem o banho, o jantar e tal. Teria que dar certo de termos um céu minimamente limpo pouco antes das nove.

Mas também está um frio pesado e teria que agasalhá-la muito bem só para sair até a porta e voltar.

Além disso, acordá-la no meio da madrugada não é uma opção, pois ela demoraria para despertar e mais ainda para voltar a dormir.

E assim passei os dias, criando justificativas bestas para minha desídia e meu verdadeiro boicote às estrelas de Helena, e não tocamos mais no assunto. Achei até que ela nem se lembrasse mais do pedido.

Que nada. Hoje cedo, antes de sair de casa, ela me deu um beijo e falou assim, naturalmente:

- Papai, você até hoje ainda não me mostrou as estrelas, hein? Hoje à noite você tem que me mostrar.

Na hora me bateu uma sensação estranha. Pensei comigo, eu não sou essa porcaria de pai incapaz de atender a um pedido tão essencial desse vindo da minha filha.

Vejam, eu poderia ter negado a ela um presente qualquer, um brigadeiro antes do almoço ou uma terceira bisnaguinha antes de dormir. Mas caramba, não poderia ter-lhe negado as estrelas.

Essa culpa me consumiu o dia todo e agora eu não quero nem saber.

Faça o frio que fizer, faça ou não chuva, seja o horário que for.

É hoje à noite que pela primeira vez mostrarei as estrelas à Helena.

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segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Ato Gratuito - Clarice Lispector

O Ato Gratuito
Clarice Lispector

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Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquí­ssimas, estava eu escrevendo à máquina – quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta.

E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava – precisava com urgência – de um ato de liberdade: do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro mas sim, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.

Então minha própria sede guiou-me.  Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. “Que rua?”, perguntou ele. “O senhor não está entendendo”, expliquei-lhe, “não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro.” Não sei por que olhou-me um instante com atenção.

Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver. Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.
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O mistério me rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvores de tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria impossí­vel abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através de raí­zes pesadas e duras como garras – como é que corria a seiva, essa coisa quase intangí­vel que é a vida? Havia seiva em tudo como há sangue em nosso corpo

De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raí­zes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom – como um estremecimento apenas perceptí­vel de alma – um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saí­da.

O chão estava às vezes coberto de bolinhas de aroeira, daquelas que caem em abundância nas calçadas da nossa infância e que pisamos, não sei por que, com enorme prazer. Repeti então o esmagamento das bolinhas e de novo senti o misterioso gosto bom. Estava com um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais fraco.

Voltarei num dia de chuva – só para ver o gotejante jardim submerso.

Nota da autora: peço licença para pedir à pessoa que tão bondosamente traduz meus textos em braile para os cegos que não traduza este. Não quero ferir os olhos que não vêem.

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domingo, 15 de julho de 2018

Cinema - INGMAR BERGMAN

Ingmar Bergman e um mergulho 
no rio escuro do cinema 
Juliano Mignacca

"O filme é um sonho, como a música. 
Nenhuma arte passa à nossa consciência da maneira que o filme faz. 
Ele vai diretamente aos nossos sentimentos e toca o fundo de nossas almas."
Ingmar Bergman, 14 de julho 1918 - 30 de julho 2007 


O Sétimo Selo, 1956



Na cena final do filme Luz de Inverno, de Ingmar Bergman, há um diálogo entre o pastor e o ajudante da igreja no qual este especula que a dor física de Cristo teria sido insignificante se comparada à dor de quando ele gritou: “Deus, meu Deus! Porque me abandonastes?” 
Prossegue a personagem de Allan Edwall: “Jesus acreditou que tudo aquilo que ele havia pregado fora em vão. No momento antes de morrer, Cristo foi tomado pela dúvida. Certamente este deve ter sido seu maior sofrimento. O silêncio de Deus”. 
O trecho desse magnífico filme de 1962 ilustra um dos temas mais recorrentes na obra do sueco Ingmar Bergman : o silêncio, a afasia de Deus.
Luz de Inverno, 1962

As personagens são impotentes para resolver suas angústias. As convicções religiosas podem amenizá-las. Mas, se a fé é invenção do homem, como dizer que Deus também não é? Se ele existe, por que não se manifesta? Dúvidas. 
Qual certeza se tem do que vem após a morte? Como todo mundo, Bergman não pode responder a essas perguntas. Ainda assim, é interessante como seus filmes lidam de forma direta sobre essas questões. Sem metáforas. Não há rodeios. 
Da mesma maneira aborda outras tantas inquietações do homem. As existenciais em Morangos Silvestres (1957). A sensualidade, o desejo como motor da vida em Monika e o Desejo (1952). 
O filme Persona (1966), uma obra-prima, cuja densidade psicanalítica se soma a uma experimentação estética de grande refinamento. 
A busca pela identidade espiritual em Sétimo Selo (1956). 
Cenas de um Casamento (1973), produzido para a TV sueca, que retrata como a idealização da felicidade a dois pode ser repentinamente arruinada. É como um soco no estômago a frieza e a agressividade dos diálogos no processo de separação do casal. 
Sua obra é aberta às investigações da vida. Por isso tem ressonância em qualquer lugar e qualquer período. É atemporal. 


Persona, 1966

É improvável refletir sobre Bergman algo que ainda não tenha sido dito pela crítica ou observado pelos amantes da sétima arte. Há milhares de textos sobre o autor e sua obra. Até mesmo porque são mais de 50 filmes numa carreira de 60 anos. 
Por incrível que pareça, teve uma vida profissional ainda mais fecunda com o teatro. Produziu três vezes mais para essa outra arte. Foi um artista completo. Diretor e roteirista, tinha enorme capacidade de extrair atuações impressionantes de seus atores. Trabalhava quase sempre com os mesmos, todos excepcionais, diga-se de passagem.

Descobriu mulheres lindas para papéis marcantes. Como não se apaixonar por elas? Ele próprio não pôde escapar. 
Relacionou-se com a belíssima Bibi Andersson e com Liv Ullman, com quem  fez 10 filmes e uma filha. Uma das atrizes mais emblemáticas da historia do cinema. 
Conquistou também a estonteante Harriet Andersson, que trabalhava como ascensorista quando a conheceu. Para que ela atuasse, realizou Monika e o Desejo. O filme causou enorme escândalo em festivais de cinema, sobretudo na América do Sul, primeiro lugar do mundo onde seus filmes teriam ganhado reconhecimento, antes mesmo que na Suécia.
Dirigiu a espetacular Ingrid Thulin e Kari Sylwan, que trabalhou em Gritos e Sussurros e Face a Face
Todas elas alternando entre papéis frágeis e densos. Ora protagonistas, ora como coadjuvantes. 
E como não mencionar os atores, cujas atuações certamente permanecem latentes na memória dos cinéfilos. Erland Josephson, Gunnar Björnstrand, Max Von Sydow…


Harriet Andersson, Monika e o Desejo, 1952

Ingrid Thulin e Max Von Sydow, A Hora do Lobo, 1968


Liv Ullman e Kari Sylwan, Gritos e Sussurros, 1972


Em julho o cineasta completou aniversário de vida e morte. 
Será sempre oportuno reverenciá-lo. Afinal, é um dos maiores artistas da história do cinema. 
Penetrar na obra de Bergman é como um mergulho num rio à noite, na escuridão das incertezas. A diferença é que no rio, quando necessário, é possível emergir em busca de luz e segurança. Com o cinema de Bergman, dificilmente se sairá ileso.


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quinta-feira, 12 de julho de 2018

CARPE DIEM - Antônio Cícero

Da página Revista PROSA VERSO & ARTE

“Carpe diem”
– por Antônio Cícero (*)


Um dos poemas mais famosos do poeta romano Horácio é a ode 1.11. Nela, dirigindo-se a uma personagem feminina, Leucônoe, o poeta lhe diz que não procure adivinhar o futuro:


Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.

[Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.]



A frase “carpe diem” tornou-se um aforismo epicurista e um tema poético a que inúmeros poetas recorrem.
No Brasil, por exemplo, Gregório de Matos, imitando um famoso poema de Góngora, diz, em soneto dedicado a uma “discreta e formosíssima Maria“:


Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o Dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza
E imprime em toda flor sua pisada.

Ó não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

O soneto mencionado de Góngora, uma obra-prima, é o seguinte:

Mientras por competir con tu cabello,
oro bruñido al sol relumbra en vano;
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente el lilio bello;

mientras a cada labio, por cogello,
siguen más ojos que al clavel temprano;
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello;

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

no sólo en plata o viola troncada
se vuelva, mas tú y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.

O poeta Mário Faustino escreveu o seguinte belíssimo soneto chamado Carpe Diem:


Que faço deste dia, que me adora? 
Pegá-lo pela cauda, antes da hora 
Vermelha de furtar-se ao meu festim? 
Ou colocá-lo em música, em palavra, 
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra? 
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim 
Tremenda noite deixa se ela ao leito 
Da noite precedente o leva, feito 
Escravo dessa fêmea a quem fugira 
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre 
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre. 
Já nele a luz da lua — a morte — mora, 
De traição foi feito: vai-se embora.)

Mas Horácio, em outra ode igualmente famosa, a 3.30, afirma que suas Odes sobreviverão às milenàrias pirâmides:


Erigi um monumento mais duradouro que o bronze, 
mais alto do que a régia construção das pirâmides 
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo 
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte 
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei 
no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou, 
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos. 
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.

[Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex:
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.]

A própria admiração que a ode continua a suscitar, parecendo confirmar o vaticínio de Horácio, aumenta essa admiração.

Ou seja, enquanto na ode 1.11 o poeta recomenda ignorar o futuro, na ode 3.30 ele exalta o futuro dos seus poemas.
Que haja uma contradição aqui não é nenhum problema. Diferentemente dos textos teóricos, os poéticos podem contradizer-se, ainda que sejam do mesmo autor, sem que, com isso, sofram o menor arranhão.
Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores.
Um poema é capaz de contradizer a si próprio e ser uma obra-prima: ele pode até ter que se contradizer, como o “Odeio e Amo” (“Odi et amo”), de Catulo, para vir a ser uma obra-prima.

De todo modo, o poeta Haroldo de Campos escreveu um magnífico poema, intitulado Horácio Contra Horácio, que diz:


ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide 
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo 
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas 
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos 
o instante a ruína a desmemória

Não só, portanto, aos poetas é lícito contradizerem-se uns aos outros ou a si próprios, tanto em diferentes poemas quanto no mesmo poema, como tais contradições podem constituir o motivo de um poema.

Observo, porém, que a ode 1.11 pode também ser lida de modo que não necessariamente contradiga a ode 3.30.
Digamos que a concepção de poesia subjacente à ode 3.30 seja que, dado que o grande poema vale por si, ele é, em princípio, indiferente às contingências do tempo. Sendo assim, não se concebe um tempo em que tal poema venha a caducar.

Logo, mesmo reconhecendo a possibilidade de que os textos se percam, talvez a verdadeira razão do orgulho de Horácio seja o fato de que suas odes intrinsecamente merecem existir. Isso quer dizer que elas merecem existir AGORA.

E merecem existir agora, seja quando for agora: seja quando for que alguém diga ou pense: “agora”. É desse modo que, precisamente ao celebrar “o instante a ruína a desmemória”, o poema se faz eterno agora. Nesse sentido, apreciá-lo é colher o dia: “carpere diem”.


*            *            *

(*)Artigo do poeta Antônio Cicero foi originalmente publicado 6 de fevereiro de 2010, na coluna do autor na “Ilustrada”, da Folha de São Paulo.

Poeta romano Horácio
Quinto Horácio Flaco (latim: Quintus Horatius Flaccus – 65 a.C.-8 a.C.). Poeta lírico, satírico e filósofo latino. Horácio nasceu em Venúsia, Itália, no ano 65 a. C. Filho de um escravo liberto que exercia a função de cobrador de impostos, fez seus estudos em Roma onde foi aluno de Lucio Orbílio Pupilo. Aperfeiçoou seus estudos literários em Atenas.

Estabeleceu-se em Roma como escriba de questores. Foi amigo do poeta Virgílio, que o apresentou a Caio Mecenas que o levou para integrar os círculos literários, tornando-se o primeiro literato profissional romano. Cultivou diversos gêneros literários principalmente a ode, em que utilizou os moldes gregos. Procurou sempre imprimir um cunho nacional às suas produções.

Seu primeiro livro conhecido foi “Sátiras” (35 a.C.). Sua obra prima, são os três livros de poemas líricos, “Odes” (23 a.C.), complementados por um quarto volume escrito em 13 a.C. Gozou de grande prestígio junto ao imperador Augusto e para ele compôs “Carmem Saeculare” (20 a.C.), um hino epistolar de caráter litúrgico dedicado a Apolo e Diana. Sua poesia escrita em forma de sentença teve muitas delas transformadas em provérbios. Faleceu em Roma, Itália, no ano 8 a.C.
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